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quarta-feira, 11 de maio de 2022

Igreja deve pedir perdão pelos seus pecados e crimes

 e  | 10 Mai 2022

Há 326 testemunhos de vítimas já validados, diz a comissão para o estudo dos abusos na Igreja, pedindo mais empenho desta em dar a conhecer o trabalho que está a ser feito. E as comissões de protecção de “menores” deveriam mudar de nome – “O conceito de menor é uma ficção jurídica”, justificou Laborinho Lúcio. Foi a conferência sobre os abusos, que decorreu em Lisboa.

O padre jesuíta Hans Zollner, responsável da Protecção de Crianças no Vaticano, no colóquio organizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, 10 de Maio 2022. Foto © Ecclesia/HM

Hans Zollner no colóquio em Lisboa: “Enquanto Igreja, temos de assumir que cometemos erros e que até encobrimos crimes.“ Foto © Ecclesia/HM

A Igreja Católica deve, enquanto instituição, “assumir” que cometeu erros e que encobriu “crimes”, confessar os seus “pecados institucionais”, pedir perdão por eles e comprometer-se em não voltar a pecar, defendeu esta terça-feira, 10 de Maio, em Lisboa, o padre jesuíta alemão Hans Zollner, responsável do Vaticano para a Protecção de Crianças.

Zollner falava na conferência “Abuso sexual de crianças: conhecer o passado, cuidar do futuro”, que decorreu na Fundação Gulbenkian, promovida pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa.

A trabalhar na área da protecção da infância desde 2014, Zollner afirmou que “na cultura católica há qualquer coisa que, aparentemente, faz com que seja impossível dizer: admito que errei e assumo as responsabilidades e a penitência”.

Dizendo que não entende essa dificuldade, Zollner colocou o acento na dimensão espiritual e no tema do perdão: “Acreditamos no perdão? Se perdoamos cada pessoa, na base do seu arrependimento, porque não podemos perdoar e pedir perdão pelas instituições?”

Respondendo numa curta conferências de imprensa a uma pergunta do 7MARGENS, Zollner referiu-se ao carácter sistémico dos abusos como algo de que só se tomou consciência nos últimos anos, por causa dos abusos sexuais na Igreja e de movimentos como o “Me Too” nos Estados Unidos. “Tudo isto reflecte o abuso de poder” afectivo, emocional, psicológico, etc. “Torna-se cada vez mais claro de que temos de analisar porque foi o abuso possível”, mas ainda há pouca investigação sobre esse carácter sistémico.

Embora fale do tema como uma questão0 de sociedade, Zollner insiste na responsabilidade maior da Igreja, criticando o clericalismo e a falta de resposta muitas vezes dada às vítimas. Está em causa a credibilidade da instituição: “Qualquer pessoa na posição de liderança pode cometer erros. Se admite que os cometeu, as pessoas perdoam. Se não admite, as pessoas não perdoam e deixam de respeitar. Espiritualmente, para mim é difícil de perceber: a Igreja acredita mesmo no perdão?”

“Enquanto Igreja, temos de assumir que cometemos erros e que até encobrimos crimes“, disse depois Zollner na sua conferência, ao final da tarde. E perguntou: “Enquanto Igreja, acreditamos no que proclamamos? Que a verdade nos liberta?” Ao mesmo tempo, considerava um “corajoso passo em frente” a Conferência Episcopal ter promovido a criação de uma Comissão Independente para o estudo destes casos e o conhecimento da verdade.

“É surpreendente e perturbador que os mesmos mecanismos – os mesmos, não semelhantes, mas os mesmos – de defesa da instituição, à custa da consciência sobre o sofrimento das pessoas, tenham estado em acção: negação da realidade ou negligência, falta de vontade de a enfrentar realmente.”

“Devastador”, disse o bispo
Pedro Strecht (c), coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa; e o bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, no colóquio organizado pela comissão na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, 10 de Maio 2022. Foto © Ecclesia/HM

José Ornelas, presidente da CEP: “O nosso projecto sempre foi, desde o início, fazer luz, clarificar esta questão.” Foto © Ecclesia/HM

O bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), responsável pelo convite ao psiquiatra Pedro Strecht para liderar a Comissão Independente, participou também nos trabalhos. Admitiu que a criação das comissões diocesanas para os abusos não funcionou e que era “preciso mudar” – daí o passo de criar o novo organismo.

“O nosso projecto sempre foi, desde o início, fazer luz, clarificar esta questão”, afirmou. Foi com a consciência da “gravidade” do problema e do “carácter devastador” dos abusos no desenvolvimento pessoal, afectivo e emocional das crianças que a CEP decidiu, em Novembro último, dar esse passo. Em linha com o que diria depois Hans Zollner, acrescentou: “Estes atentados são particularmente graves: além do mal directo e factual, afectam todo o sistema próximo de afecto, de confiança e de valores que suportam o desenvolvimento pessoal, relacional e espiritual.”

Também o padre e professor de filosofia Anselmo Borges falou da “catástrofe” dos abusos, para analisar o processo que conduziu à clericalização da Igreja e ao clericalismo. Considerou que não existe relação directa entre celibato e abusos sexuais, mas “o celibato obrigatório pode criar sexualidades pervertidas”. Além de que, “se as mulheres tivessem acesso aos lugares do topo da hierarquia, talvez a pedofilia dos padres não tivesse atingido a gravidade que conhecemos”, acrescentou, para denunciar que, muitas vezes, os responsáveis eclesiásticos, preferiram “proteger a instituição” e o que consideravam a dignidade sacerdotal, em lugar de defenderem as vítimas dos abusos.

O jornalista João Francisco Gomes, autor do livro Roma, Temos um Problema, dedicado precisamente ao tema dos abusos, referiu-se também à Igreja como “instituição de poder”, defendendo que ela deve ser “escrutinada, incluindo pela imprensa católica”. Mas citou ainda a “dificuldade sistemática de obter informações” por parte dos responsáveis católicos, a partir da sua experiência de jornalista no Observador.

Vários desses responsáveis “continuam a negar ostensivamente a importância” do trabalho jornalístico, afirmou, recordando o papel dos média na divulgação dos abusos. Por contraste, citou o elogio que o Papa e vários outros líderes católicos já fizeram desse trabalho de muitos jornalistas.

Causa civilizacional
para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, no colóquio organizado pela comissão na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, 10 de Maio 2022. Foto © Ecclesia/HM

Álvaro Laborinho Lúcio: a “criança é um sujeito com direitos” e uma pessoa “revestida de dignidade humana”. Foto © Ecclesia/HM

Na intervenção de abertura, a socióloga Ana Nunes de Ameida, que integra a Comissão, revelou que o número de casos de abusos validados se eleva já a 326: são mais homens do que mulheres e há um leque variado de idades de quem aparece agora a contar a sua história.

Nota-se, contudo, que os casos são predominantemente de pessoas dos meios urbanos e que têm um certo nível de instrução, o que poderá indiciar que não se conseguiu ainda “dar voz ao silêncio” de pessoas e casos originários de outros meios socioculturais. Neste quadro, apelou a uma maior colaboração de todos para fazer chegar a mensagem a mais gente.

Pedro Strecht, coordenador da Comissão, insistiu nesse desejo de ver a Igreja envolver-se mais na divulgação do trabalho e na existência da Comissão Independente, de modo que outros casos ainda não identificados possam ser conhecidos. Deu o exemplo da Paróquia de Santa Isabel, de Lisboa, que divulgou os contactos da Comissão no seu boletim paroquial.

Ana Nunes de Almeida negou ainda que o facto de este organismo não pretender identificar quem foram e a que instituições pertenceram os abusadores ou quantas crianças foram abusadas possa retirar significância e alcance ao trabalho. É muito importante, contrapôs, reconhecer que o problema dos abusos existe, como é que ele se manifesta, na sua complexidade intrínseca, como condição para intervir na realidade. “Temos de fazer do [combate aos] abusos uma causa civilizacional”, adiantou.

Foi de um avanço de civilização que falou Álvaro Laborinho Lúcio, também membro da Comissão, quando referiu a Convenção dos Direitos da Criança e o facto de, a partir dela, se dever passar a falar de crianças e não de menores – esta designação “é uma ficção jurídica”, enquanto a “criança é um sujeito com direitos” e uma pessoa “revestida de dignidade humana”.

Isabel Soares, psicóloga do Instituto de Educação da Universidade do Minho, referiu as relações de poder, a desigualdade entre abusador e vítima, a experiência de vulnerabilidade, e a ausência de consentimento como factores presentes nesta questão. Sobre os contextos institucionalizados em que os abusos frequentemente ocorrem, a investigadora destacou dois em que a vulnerabilidade se amplia: as instituições em que há uma dinâmica de competição, como as desportivas; e as religiosas, com uma carga simbólica e vinculadora mais acentuada.

É forte, ao longo da vida, o impacto dos danos psicológicos, emocionais e sociais causados, afirmou também. O que, aliado a questões culturais, pode ajudar a compreender o silêncio de muitas vítimas na revelação das experiências ocorridas.

Vencer os medos
Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa; e o padre jesuíta Hans Zollner, responsável da Protecção de Crianças no Vaticano, no colóquio organizado pela comissão na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, 10 de Maio 2022. Foto © Ecclesia/HM

Pedro Strecht (esqª): a maioria das vítimas de abusos na Igreja continua a assumir-se como católica . Foto © Ecclesia/HM

Pedro Strecht referiu que tal como as vítimas dos abusos fazem um processo para vencer o medo, assim também a hierarquia da Igreja precisa de vencer esse medo. E disse que o facto de membros da instituição terem abusado não significa que a Igreja, enquanto tal, abusou.

Laborinho Lúcio afirmou ainda ser “certo que houve abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa – não são abusos sexuais da Igreja, mas são abusos de pessoas dentro da Igreja”. Mas, se os responsáveis católicos optarem pela ocultação, não estará “a fazer mais do que tornar da Igreja os abusos que foram dos seus membros”. E a propósito, a uma pergunta do 7MARGENS, respondeu que as comissões de protecção de menores, das dioceses portuguesas, deveriam mudar de nome: “A criança não é um objecto de protecção, é uma pessoa sujeita de direitos”, defendeu.

“O que pedimos, diria também Pedro Strecht, é que não se faça de novo a ‘ocultação da ocultação’ que já existiu.” A propósito, o psiquiatra notou que a maioria das vítimas de abusos na Igreja não se desligou da pertença católica, continuando a assumir-se como tal.

Quanto ao acesso aos arquivos das dioceses, questão que está agora em cima da mesa, Strecht admitiu que haja diferentes sensibilidades entre os bispos, mas não as considerou entraves – um grupo de historiadores e arquivistas, liderado por Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, convidado pela Comissão Independente, está neste momento a iniciar contactos com os bispos para investigar a documentação dos arquivos diocesanos.

Se aparecessem entraves nesse acesso, disse Strecht aos jornalistas, a Comissão poderia recorrer a Roma: não seria a primeira vez que o Papa interviria numa situação dessas, afirmou.

Também sobre os 16 casos que a Comissão já enviou há algum tempo para o Ministério Público, Strecht disse esperar que haja respostas nos próximos meses e adiantou que poderão aparecer novos casos que são desse foro, não deixando de manifestar reservas à lentidão: “Já manifestei o desejo de celeridade da resposta da justiça portuguesa. Nem sempre é o que desejamos, mas neste caso é muito importante chegarmos ao final do trabalho, apresentarmos o relatório e, mesmo que seja preciso algum tempo, as pessoas sentirem que aconteceu algo” em termos de “justiça reparadora”.

O Presidente da República enviou uma mensagem aos participantes da conferência, dizendo que acompanha de “forma empenhada” o labor da Comissão. E citou um discurso do Papa Francisco na semana passada, quando dizia que a realidade dos abusos “tem um impacto devastador”.

Os testemunhos de vítimas de abuso sexual podem ser relatados através de um inquérito digital em darvozaosilencio.org, do telefone 917 110 000 (entre as 10h e as 20h, diariamente), por correio electrónico (geral@darvozaosilencio.org) ou por carta (Comissão Independente – Apartado 012079 – EC Picoas – 1061-011 Lisboa).



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