“A Paz é o fruto da Justiça”[1]
Declaração da reunião dos Secretários Gerais de
Justiça e Paz Europa – 15 de maio de 2022, em Szombathely (Hungria)
A 24 de fevereiro de 2022 o governo russo iniciou uma invasão, brutal e não declarada, da Ucrânia. Como muitos agentes da sociedade civil, a Justiça e Paz Europa condenou imediatamente a agressão russa[2]. Embora a diplomacia continue a ser essencial, nós, como Comissões de Justiça e Paz, reafirmamos, no contexto dos nossos valores e convicções cristãs, que alguns princípios não são negociáveis, em particular o respeito pela dignidade de cada ser humano, os direitos humanos universais e indivisíveis e o imperativo da não agressão, que é a base da coexistência pacífica.
Afirmamos que uma paz justa não pode ser estabelecida privando a vítima dos seus direitos e recompensando o agressor por violar os princípios fundamentais do direito internacional. Além disso, para permitir a recuperação e a reconciliação, todos os crimes de guerra e violações do direito humanitário internacional devem ser investigados de forma consistente. A doutrina social católica sobre a paz defende explicitamente o direito individual e coletivo à autodefesa consagrado no direito internacional[3]. Isto inclui também o direito do Estado atacado a solicitar o apoio de terceiros para assegurar a sua defesa. Da nossa perspetiva, portanto, o direito da Ucrânia a defender-se é indiscutível e todas os fornecimentos de armas que permitam a sua defesa no quadro dos imperativos da proporcionalidade e do direito humanitário internacional são legítimos.
No entanto, como Comissões de Justiça e Paz, é nossa tarefa acompanhar estes desenvolvimentos com discernimento. Queremos salientar que os meios militares, por si só, não podem trazer uma paz duradoura. Além disso, acarretam grandes riscos de escalada. É, portanto, essencial evitar a retórica da guerra e manter os esforços diplomáticos através de vários canais e multilaterais. Além disso, as decisões sobre fornecimento de armas devem ser, estritamente, um último recurso e baseadas nos direitos humanos e princípios humanitários. Os interesses económicos da indústria de armamento não devem interferir. A resolução e prevenção de conflitos, bem como o desarmamento, devem continuar a ser objetivos também no futuro.
Como países europeus, devemos reconhecer a nossa quota-parte de responsabilidade nesta situação terrível. Ignorámos largamente os avisos de vários países vizinhos da Rússia sobre a ameaça de agressão, bem como a destruição e as catástrofes humanitárias na Chechénia, Geórgia e Síria. Os nossos esforços para avançar com mecanismos conjuntos e eficazes de desarmamento e controlo global do armamento também foram insuficientes. Devemos, também, reconhecer que noutros contextos, tendo como pano de fundo presumíveis interesses económicos, negligenciámos os direitos humanos fundamentais e o desenvolvimento humano global. Globalmente, em vez de aumentarmos os nossos esforços para uma transformação socio-ecológica abrangente, que está atrasada devido à aguda crise climática, aumentámos a nossa dependência de combustíveis fósseis, incluindo os russos. Por estas falhas, pedimos expressamente desculpa aos nossos irmãos e irmãs da Ucrânia, e não só. É nossa responsabilidade individual e coletiva mudar esta linha de ação tão rápida e consistentemente quanto possível.
Durante o nosso encontro em Szombathely, a cidade natal de São Martinho, na Hungria, ouvimos os testemunhos impressionantes de alguns cristãos que podem servir-nos de modelo nestes tempos difíceis. O Beato János Brenner ergueu-se em defesa da caridade e da sua profunda fé cristã.; vivendo na verdade, foi visto como uma ameaça pelo regime comunista húngaro. O Beato Vilmos Apor defendeu os mais pobres e os perseguidos ao longo da sua vida e deu a sua vida quando se opôs aos soldados russos para salvar as mulheres de serem raptadas e violadas. O Beato Ladislau Batthyány-Strattmann dedicou a sua vida à vocação de cuidar dos mais pobres e mais abandonados como médico. A partir destes cristãos corajosos, podemos ser inspirados a sermos nós próprios corajosos. Eles ensinam-nos que não devemos tomar as nossas decisões guiados por medos e por complacência, mas que, como cristãos, somos chamados a concentrar-nos primeiro nos mais pobres e mais vulneráveis.
Deste modo, comprometemo-nos a trabalhar incansavelmente para responder às necessidades, defender direitos e por uma Europa renovada, em oração e animados pela esperança de que
1. a guerra terminará com uma Ucrânia livre, segura e independente nas suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, com um lar para cada um dos seus cidadãos, independentemente da sua língua, filiação religiosa, origem étnica ou nacionalidade;
2. será prestada ajuda suficiente às pessoas deslocadas internamente e que os países de acolhimento de refugiados terão a força de perseverar na sua preciosa hospitalidade, para que as pessoas deslocadas da Ucrânia recebam um acompanhamento contínuo e generoso;
3. para além da Ucrânia, as nossas nações desenvolvidas mostrar-se-ão fortemente solidárias com as pessoas e regiões do mundo mais afetadas pelo acentuar da crise alimentar mundial[4];
4. nós, europeus, teremos a sabedoria de colocar sistematicamente o sofrimento alheio acima das preocupações pela nossa própria prosperidade, e mostraremos resiliência; ao mesmo tempo que partilhamos equitativamente esse fardo e que os lucros em excesso são utilizados para apoiar os mais pobres;
5. os ucranianos, com apoio internacional (CICV, OSCE, Equipas de Investigação Conjunta), terão capacidade para reunir provas e relatórios sobre violações de direitos humanos, crimes de guerra e crimes contra a humanidade; obterão os recursos para investigar e processar os autores, pois crimes hediondos não punidos facilitam a prática de outros e assombram os países durante gerações;
6. os mortos, civis e militares, de ambos os lados, serão devidamente lembrados; e as vítimas e famílias sobreviventes serão adequadamente compensadas e cuidadas; a memória será preservada num espírito de reconciliação;
7. na Europa serão superados os receios de uma transição radical, pessoal e coletiva, para a descarbonização da vida; é essencial a desvinculação das energias fósseis, não só para recuperar a margem de manobra em relação à Rússia, mas também em relação a outros regimes autoritários;
8. os líderes da União Europeia apoiarão a reconstrução da Ucrânia e concederão à Ucrânia o estatuto de candidato no próximo Conselho Europeu em junho, respeitando também as aspirações de outros países europeus a tornarem-se membros de pleno direito, especialmente os dos Balcãs Ocidentais;
9. as Nações Unidas recuperarão força suficiente para agir como um instrumento eficaz na resolução de conflitos e na diplomacia multilateral e para a aplicação do direito humanitário através do Tribunal Penal Internacional;
10. onde os povos e a paz são ameaçados pela agressão e pela guerra, as Igrejas e os seus representantes atuarão mais estreitamente em conjunto e com outras comunidades religiosas em prol da justiça e da paz no mundo;
11. a extraordinária força das orações ecuménicas pela paz continuará a ser um raio de luz num mundo dilacerado pela guerra.
Szombathely, 15 de maio de 2022
[1] Mensagem de São Paulo VI (1 de Janeiro de 1972). Ver também o Discurso na ONU em 5 de outubro de 1995. São João Paulo II in Sollicitudo rei socialis, 15.
[2] Ver a declaração da Comissão Executiva da Justiça e Paz Europa, de 25 de fevereiro: http://www.juspaxeu.org/en/
[3] Artigo 51 da Carta das Nações Unidas.
[4] Antes da guerra, à Rússia e à Ucrânia cabiam 25% das exportações mundiais de trigo. O conflito colocou grandes pressões sobre a produção de trigo e de petróleo e agravou o destino das cerca de 800 milhões de pessoas que sofrem de fome e das 2 mil milhões consideradas em insegurança alimentar.
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