(II) Com Matilde Trocado e David Lopes
A segunda sessão das Conversas de Maria João Avillez – uma série de diálogos que procuram uma resposta: “E Deus em nós?” e que decorre num espaço emblemático da cidade de Lisboa, a Capela do Rato - teve como protagonistas Matilde Trocado e David Lopes.
«Se Deus nos ofereceu talentos que se tornaram de pertença pública e partilhável, como “levá-Lo” aos outros?» é a pergunta de Maria João Avillez … e neste caso, muito concretamente, esta pergunta faz um enorme sentido: a Matilde Trocado e o David Lopes colocaram o seu talento como pertença pública e partilhável, eles foram dois destacados colaboradores da JMJ 2023. Matilde Trocado, assumiu a direção artística dos eventos centrais da jornada e David Lopes chefiou a unidade de missão (organizativa) da câmara durante a preparação e até ao final da Jornada.
Nesta segunda conversa, havia o propósito de “recordar a jornada mundial da Juventude... uma cerimónia tão inesquecível quanto impecável ... tudo quanto se viu”. E compreender, conversando com quem esteve nos alicerces, como se chega ao resultado impactante que o Papa Francisco descreve na mensagem para a 38ª JMJ em Seul: “… como foi lindo o nosso encontro em Lisboa! Uma verdadeira e real experiência de transfiguração, uma explosão de luz e alegria!”.
Mas, ao longo do percurso, certamente houve dúvidas, dificuldades, problemas a resolver... Como foi o início, que objetivos tinham em mente, como foram ultrapassando obstáculos? E Deus em nós?
“Eu, não tinha noção da dimensão” – diz David Lopes - “houve ao mesmo tempo a preocupação e o sentido de responsabilidade, a complexidade foi muito grande do ponto de vista organizativo. Havia um elemento da equipa que todos os dias de manhã chegava e dizia uma coisa altamente motivadora, tocava-me no braço e dizia “isto tem tudo para correr mal!” e, em boa verdade, ele não dizia aquilo por rotina, ele sentia aquilo e nós também ... a jornada, quase durante todo o seu tempo teve má imprensa … porquê? porque havia palavras muito mais fortes para o mundo do que valores, do que a comunhão, do que os peregrinos, do que o desafio de reflexão, os temas que eram para ser refletidos ... havia palavras como palco, havia palavras como a cidade vai ser destruída, o Jardim do parque Eduardo sétimo vai desaparecer da história da cidade ... é melhor irmos para o Algarve ... vai ser o caos … e depois de repente, não querendo atalhar caminho nem simplificando demasiado, houve uma espécie de correu bem!…"
Também a Matilde Trocado sentiu o mesmo: “acho que se partiu com uma boa dose de inconsciência … ao longo de todo o processo tínhamos noção de que era uma coisa mesmo muito grande ... eu lembro-me de que um dos motes que ficou desde o início é o final de um poema da Sophia de Mello Breyner que diz “em tudo coloco solenidade e risco” e eu acho que nós agarramos isso, ok, em tudo vamos pôr solenidade e risco ... claro que fomos partindo pedra com o que tínhamos... tivemos algumas surpresas pelo caminho, seja porque o palco mudou e é preciso repensar ... eu sou péssima, queixei-me imenso pelo caminho”
“É que a ela não desiste nem cede – diz David Lopes - havia umas escadas que desciam lateralmente e se aproximavam do centro para que, de alguma forma, isto significasse o acesso ao Santo Padre … tudo aquilo depois transformado em custos era um desafio muito grande e quantas vezes essa discussão existiu … os economistas e os gestores íam tirando umas fatias e depois não ia ser o que foi ... a Matilde nunca abdicou de lutar para que aquilo fosse assim ... isso e foi extraordinário”. Matilde Trocado, continua, “mas, afinal, resolveu-se tudo ... a primeira semana foi perceber o que faz sentido … surgiram contratempos sim… nunca se tem todo o budget que se quer, nunca tudo corre bem … mas, no caso dos processos criativos, às vezes são essas resistências que nos impulsam a criatividade … a única coisa que nunca foi ensaiada foi um momento da via Sacra em que caem pétalas brancas que é uma estação em que Jesus encontra nossa Senhora ... não havia orçamento para as pétalas brancas e, portanto, tivemos de confiar ... ”
Problemas resolvidos, como foi o caminho? A Matilde Trocado que foi diretora artística dos eventos centrais, fala-nos da sua experiência: “nós tínhamos o fundamento teológico da jornada, houve um trabalho prévio sobre cada um dos eventos para desenvolver o conceito... sempre achámos que o lado artístico era uma outra uma oportunidade para abrir a Jornada, para envolver pessoas de dentro e de fora da igreja ... e depois também quisemos que no palco estivesse representado o que é Jornada … aquilo que qualquer pessoa que tenha andado nas ruas nesses dias viu … é uma mistura de culturas e ao mesmo tempo de união ... e nós pensamos, ok, vamos ter isso no palco … abrimos um casting ao mundo inteiro, qualquer jovem podia candidatar-se para fazer parte do elenco da Jornada ... interessava-nos ter essa riqueza na sala de ensaio para que estes jovens pudessem ficar com essa rede de outros artistas católicos no mundo, espalhados por aí fora... foi muito rico para nós trazer todas essas pessoas... Tudo começava numa lógica de muita alegria, mas a Via Sacra foi muito fundo. A minha preocupação é que eu já não sou assim tão jovem e queria que as coisas fossem dos jovens para os jovens e, portanto, foi feita uma consulta mundial... foram os jovens que identificaram quais são as suas feridas, as suas fragilidades e depois, na sala de ensaio, em que tínhamos jovens de todo o mundo, todos eles se reviam naquelas fragilidades e todos eles com contextos completamente diferentes ... aquilo fazia sentido para todos...
Para David Lopes resolver problemas não era o problema, era, afinal, o seu próprio caminho. “A polícia está de parabéns … os próprios peregrinos em alguns momentos os aplaudiam... Lisboa, Loures e a Igreja fizeram como que um tratado de Tordesilhas no sentido das responsabilidades ... a cidade tinha que continuar a funcionar ... atividades económicas … as pessoas acamadas e entrega de medicamentos … a higiene urbana ... os green keepers - e desculpem a expressão em inglês - são voluntários que estavam junto dos buxos chamando a atenção para aquele património natural ... depois tivemos a construção dos grandes palcos, o altar o palco do parque Tejo e o palco do parque Eduardo VII que a certa altura foi muitíssimo bem agarrado com coragem pela própria Igreja.”
E no final...quando sentiram que tudo estava pronto? Quando é que se olha e se diz está pronto... quando é que se dá uma coisa por concluída?
“Nunca! - diz Matilde - na minha experiência profissional, nós temos data de estreia e quando estreia ... aí já não é nosso, mas até ao último minuto não se desiste de nada, de qualquer detalhe que ainda possa fazer diferença, não se desiste … até ao fim estamos na luta.
“Há um momento” - conta David - “de que me lembro, com uma certa graça: foi antes de se abrirem as portas ... nunca ninguém tinha visto o que era um milhão e meio de pessoas a dirigirem-se para um sítio ... era impossível ver, perdia-se de vista, e a certa altura o comandante da polícia diz “podemos abrir a porta”... eh pá... é o momento mais próximo do dia do juízo final … o responsável da segurança da igreja - Jorge Barradas - porque ele é que representa a organização, diz ao comandante da polícia “abram-se as portas” e o comandante da polícia diz “seja o que Deus quiser” ... olhe, mas é exatamente isso, foi o que Deus quis!... E, um dos nossos comandantes da polícia nacional dizia que só descansava quando as rodas do avião do Santo Padre saírem da Portela, quando virmos os pneus já por cima do alcatrão”
E Deus em nós? Como o reconheceram estes dois protagonistas de áreas tão diferentes?
Para David “talvez, só nas palavras do Santo Padre tenha encontrado uma resposta, há um momento em que ele nos lembra quais são os dois verbos do peregrino e eu acho que nós, sem o sabermos, tivemos que conjugar esses verbos … procurar e arriscar ... e todo o percurso foi de procura, fazer o melhor possível, porque dá tanto trabalho fazer mal como fazer bem, temos é que conseguir encontrar as formas de nos dirigirmos para aquilo que de melhor vamos dar aos outros e correr muitos riscos.
“No processo da jornada em concreto – conta Matilde - houve momentos em que eu olhei para cima e pensei, ok, eu estou a dar tudo e pronto …, mas nós, a minha equipa e eu, acho que temos muito claramente a noção de que o diretor criativo foi o Espírito Santo e depois fizemos o que pudemos ... nós dizemos que Deus criou o mundo, eu acho que está a criar connosco, por isso, também o que nós fizemos na jornada foi Deus a criar connosco.”
E agora? O que esperam, o que desejam que aconteça? Matilde, deseja uma Igreja destemida, “eu acho que deve ser destemida … acho que a igreja não deve ter medo, temos medo de quê? eu sei que às vezes é difícil, mas acho que a igreja não se deve encolher …e passado isto ... não tenhamos medo de abrir as portas a quem quer que seja ... não ter medo, só isto.”
David quer respostas ao desafio, “ eu sinto que a igreja mostrou a muitas pessoas uma face que as pessoas não conheciam, nós próprios, superou as nossas expectativas … é uma oportunidade única para não perder o elo e a energia e a esperança que foi criada nos milhares e milhares de voluntários … como é que podemos pôr esta esta força anímica, esta esperança ao serviço da igreja, da unidade, da diversidade, do encontro entre religiões ... eu acho que há um desafio absolutamente extraordinário que a Igreja em Portugal tem que agarrar com as duas mãos para que esta chama não se apague”.
Abriram-se as portas. Seja o que Deus quiser!
Rosa Ventura
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