Páginas

domingo, 1 de janeiro de 2023

O “último” Papa europeu que protagonizou a grande ruptura católica

Joseph Ratzinger/Bento XVI (1927-2022)

 | 31 Dez 2022

Bento XVI na celebração da eucaristia na Praça do Comércio, em Lisboa, 11 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor.

Bento XVI na celebração da eucaristia na Praça do Comércio, em Lisboa, 11 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor.

O Papa visto como ortodoxo e guardião da tradição introduziu a grande ruptura no papado; o teólogo adepto do diálogo entre a fé e a razão não permitiu que outros teólogos investigassem com liberdade; o homem tímido e reservado escreveu a encíclica “Deus é Amor” (Deus Caritas Est), na qual fala das dimensões do amor e da caridade como ágape e eros, linguagens pouco habituais no discurso eclesiástico; o cardeal reticente ao diálogo inter-religioso que o Papa João II inaugurara, estabeleceu pontes inesperadas com o islão e encetou uma aproximação mais intensa aos judeus; o Papa alemão insistiu na ideia de passos concretos para o diálogo com protestantes, mas não foi capaz de traduzir essa sugestão numa iniciativa específica; o líder católico que começou a enfrentar uma grande vaga de escândalos de corrupção, abusos sexuais e de poder considerou que era urgente limpar a casa e, perante a imensidão da tarefa, preferiu dar lugar a outro, com mais energia e força anímica que ele sentia começar a faltar.

Joseph Ratzinger, que entre 2005 e 2013 foi o Papa Bento XVI, morreu às 9h34 de Roma (8h34 em Lisboa) deste sábado, 31 de Dezembro, após poucos dias de sucessiva perda das funções vitais e no final de um processo de degradação progressiva da sua saúde.

Na segunda-feira, dia 2 de Janeiro, o corpo será levado para a Basílica de São Pedro, para que os fiéis o possam velar; o funeral, simples a seu pedido, está previsto para quinta-feira, 5, ficando sepultado na cripta da Basílica de São Pedro.

A renúncia de Bento XVI ao papado foi a grande ruptura por ele introduzida na Igreja Católica: os papas que até aí tinham renunciado fizeram-no para resolver lutas de poder ou conflitos entre monarcas europeus ou famílias nobres de Roma. Era dia de Carnaval, mas o anúncio foi muito sério: em 13 de fevereiro de 2013, Bento XVI anunciava a vários cardeais reunidos em consistório que as forças lhe faltavam já para enfrentar a sucessão de escândalos que se vinham acumulando no Vaticano ou em redor dele: dinheiros, luta pelo poder, corrupção, abusos sexuais, abusos de consciência. Consequência: abandonava o cargo, retirava-se para uma vida de oração, entregava a solução a um futuro conclave.

Fazia-o por causa de “uma Igreja que ele amava mais do que a si mesmo”, escreveu neste sábado, na sua página no Facebook, o economista e teólogo católico Luigino Bruni, que integra o Movimento dos Focolares e é o principal dinamizador da iniciativa Economia de Francisco, lançada pelo actual Papa. “Aquele extraordinário acto de renúncia (muito parecido com o de Celestino), fizeram do seu pontificado algo grandioso – um gesto decisivo é fruto de uma vida inteira, nunca se concretiza isoladamente. Porque com aquele gesto, sem que ele soubesse, ele trouxe a Igreja para a pós-modernidade.”

Essa renúncia, escreveu ainda Bruni, “pôs fim à visão sagrada do papado, restaurou-o na sua dimensão evangélica de serviço e, assim, mudou a história dos futuros papas. E voltando a Joseph Ratzinger depois de ser Papa Bento, ele disse-nos, sem o dizer, que cada homem é maior que o seu próprio destino.” Foi, no fundo, uma decisão que fez jus ao lema com que se apresentara no dia da sua eleição como Papa, em 19 de Abril de 2005, quando na Praça de São Pedro os aplausos foram também pontuados por algumas vaias: o de “um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”.

O papado no trilho do serviço

Bento XVI em Fátima, 12-13 de Maio de 2010. Foto © Santuário de Fátima/Direitos reservados.

Bento XVI em Fátima, 12-13 de Maio de 2010. Foto © Santuário de Fátima/Direitos reservados.

A dessacralização do papado e a sua colocação de novo no trilho do serviço ao povo de Deus foi a consequência maior do seu gesto, que abriria caminho a quem, no conclave de 2005, reunira alguns votos para poder ser a única alternativa a Ratzinger: Jorge Mario Bergoglio, que em 2013 escolheria o nome de Francisco. Em 2005, só depois de Bergoglio anunciar que não queria que votassem nele, permitiu que os votos rapidamente se concentrassem no alemão originário da Baviera, que vinha acompanhado da fama de inquisidor, pelo seu papel à frente da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF).

Enquanto prefeito da CDF, Joseph Ratzinger, o teólogo, erigiu a sua teologia e o modo de encarar o papel de teólogo como o único caminho possível para o labor teológico. Cerca de uma centena de teólogos e teólogas do mundo inteiro foram chamados a Roma, questionados ou simplesmente sancionados sem terem sequer direito a réplica. Nomes incontornáveis da teologia católica do século XX como Bernard Häring, Edward Schillebeeckx, Johann Baptist Metz, Hans Küng [ver 7MARGENS], Leonardo Boff, Charles Curran, Eugen Drewermann, Tyssa Balasuriya, Anthony de Mello, Jacques Dupuis ou Lavynia Byrne, entre muitos e muitas outras foram objecto da censura fria de Ratziner. A par de admoestações colectivas a grupos de teólogos ou a congregações religiosas (incluindo os jesuítas, de onde sairia o actual Papa) que ousavam criticar as estruturas de poder do Vaticano ou a doutrina moral tradicional da Igreja – as duas grandes pedras de toque no confronto. Ou ainda a correntes como a teologia da libertação na América Latina, objecto de um forte controlo e perseguição, ou às aberturas propostas pela Igreja Católica na Alemanha.

Esta imagem seria atenuada durante o pontificado: Ratzinger, agora Bento XVI, reconciliou-se com Hans Küng e Gustavo Gutierrez, “pai” da teologia da libertação, encetou novos processos de diálogo com cardeais e bispos alemães, abriu as portas a perspectivas morais, como a do uso do preservativo para evitar males maiores, até aí proscritas pelo discurso oficial católico.

Outro dos factos que ajudou à dessacralização do papado, em paradoxo com o seu papel na Congregação para a Doutrina da Fé, foi que, enquanto Papa, Joseph Ratzinger continuou a publicar textos em nome próprio. A sua teologia, ao contrário do que acontecera enquanto prefeito da CDF, aceitou fragilizar-se na ágora teológica e no conflito das interpretações. Nesse sentido, a sua obra Jesus de Nazaré, em três volumes, é o exemplo maior disso mesmo.

Personalidade tímida e reservada, amante da música, exímio pianista ao que contavam os seus mais próximos, Joseph Aloisius Ratzinger nasceu em Marktl am Inn (Alemanha), no dia 16 de abril de 1927. Era Sábado de Aleluia. A primeira polémica, mal foi eleito, teve a ver ainda com a sua infância alemã, com a acusação de ter servido na Juventude Hitleriana. Sim, Ratzinger tinha sido levado para servir na defesa antiaérea do regime nazi. Escapou assim que pôde e nunca se lhe percebeu qualquer simpatia pelo regime nazi. Pelo contrário: na sua visita ao campo de extermínio de Auschwitz, ele, Papa católico e alemão de nacionalidade, condenou o regime de “criminosos” que quis “matar Deus” apresentou-se como “filho da Alemanha” e confessou: “Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus: Porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Com pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque esteve ele silencioso? Como pôde ele permitir esta matança sem fim, este triunfo do demónio?”

A sua visita a Auschwitz foi, com as idas à Sinagogas de Colónia (Alemanha) e Roma (Itália), um dos grandes momentos da sua aproximação ao judaísmo. Mas, para o grande teólogo que era Ratzinger, essa aproximação, mais do que feita de gestos simbólicos, deverão passar pela teologia e pela valorização comum da Bíblia: “(Na fé de Israel, são essenciais a Torá e, por outro lado) o olhar de esperança, a espera do Messias – a espera, isto é, a certeza de que o próprio Deus entrará nesta história e realizará a justiça, à qual apenas podemos avizinhar-nos de formas muito imperfeitas. (…) Também a Igreja espera o Messias, que já conhece e à qual, antes de mais, ele manifestará a sua glória”, afirmara ele, no ano 2000, numa intervenção na Academia das Ciências Morais e Políticas de Paris.

Ao encontro do islão

Bento XVI, CCB, artistas, Daniel Rocha

Papa Bento XVI no Centro Cultural de Belém, em Lisboa no encontro com os artistas, o mundo da cultura e representantes de outras religiões, 12 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor

Já com o islão, o Papa Bento – que tinha expressado várias reticências ao movimento de diálogo inter-religioso propulsionado por João Paulo II –, foi forçado pelas circunstâncias a encetar uma aproximação que se revelou frutífera: depois de um discurso proferido em Ratisbona (Alemanha), em Setembro de 2006,

que incendiou a rua de várias países árabes por causa de uma frase menos diplomática e mal interpretada, Ratzinger promoveu vários encontros com responsáveis e teólogos muçulmanos, recebeu pela primeira vez um rei saudita no Vaticano e com ele decidiu criar um centro de diálogo inter-religioso (o Centro Rei Abdullah para o Diálogo Inter-Cultural e Inter-Religioso, que reúne também a Áustria e a Espanha e desde há meses tem sede em Lisboa). Esse processo abriria caminho à Declaração sobre a Fraternidade Humana, que o Papa Francisco assinou com o Grande Imã de Al Azhar, a mais importante autoridade do islão sunita, o xeque Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, em 4 de Fevereiro de 2019.

Preocupado com a ideia de pôr o cristianismo a falar uma linguagem racional e contemporânea, Ratzinger quis, paradoxalmente, recuperar rituais, vestes e fórmulas esquecidas. A sua aproximação aos lefebvrianos, no início de 2010, pouco antes da viagem a Portugal, foi outro ponto crítico do seu pontificado. Acabou por não resultar: depois de várias críticas de bispos e muitas ambiguidades na própria recusa e aceitação dos tradicionalistas, Bento XVI foi obrigado a retroceder.

Outro dos processos que não correu bem foi a aproximação aos protestantes e ortodoxos. Pelo facto de ser alemão, tal como Lutero, Ratzinger era um profundo defensor do diálogo ecuménico entre cristãos – sobretudo com as igrejas luteranas e orientais. Isso mesmo foi por ele estabelecido como uma prioridade para o seu pontificado. Logo após ter sido eleito, na primeira missa com os cardeais, o novo Papa afirmava que assumia “como compromisso primário o de trabalhar sem poupar energias na reconstituição da plena e visível unidade de todos os seguidores de Cristo” assumindo que essa era a sua “ambição” e “dever”. E acrescentava serem “necessários gestos concretos que entrem nos corações e despertem as consciências”, no sentido do diálogo teológico e do aprofundamento das motivações históricas”.

Apesar de ter insistido nessa ideia por várias vezes, Ratzinger não propôs nenhuma iniciativa concreta de vulto, que apontasse nesse sentido. Nem sequer conseguiu, apesar da sua vontade, reunir com o patriarca ortodoxo russo, que só anos depois, em Fevereiro de 2016, aceitou encontrar-se com Francisco.

O relativismo contemporâneo

Bento XVI em Lisboa, 11 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor.

Bento XVI em Lisboa, 11 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor.

Enquanto Papa, como já antes enquanto cardeal, o magistério de Bento XVI ficou marcado pela condenação do que ele considerava o relativismo contemporâneo: “Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”, afirmara ele, na missa que, em 18 de Abril de 2005, marcou o início do conclave de onde ele próprio sairia como Papa.

A esta ideia não era alheio o trajecto pessoal do próprio Ratzinger que, enquanto jovem teólogo, participou no Concílio Vaticano II (1962-65). Mas, perante a crise do Maio de 1968 em França e a própria crise em que a Igreja Católica continuou envolvida apesar do Concílio, Ratzinger retrocedeu em várias das suas ideias – como por exemplo, na possibilidade de repensar o celibato obrigatório para os padres. A expressão do seu pensamento sobre o relativismo fez-se entre afirmações profundamente ancoradas na realidade e a percepção de que uma parte delas decorria desse receio que encarava com pessimismo várias mudanças sociais. “As crises, medos, incertezas e ambivalências de Bento XVI eram os da sua Igreja”, sintetizava Luigino Bruni no texto já citado.

Apesar disso, Bento XVI era um acérrimo defensor de que a fé tem uma profunda ancoragem na razão e se relaciona em profundidade com a ciência e a acção política, no sentido mais largo do termo.

O magistério pontifício de Ratzinger teria ainda três momentos altos com a publicação de três encíclicas sobre o amor e a esperança. Na primeira delas, Deus Caritas Est (“Deus é amor”) – significativamente publicada com data do dia de Natal de 2005 –, Ratzinger reabilitava a dimensão do eros para o cristianismo, pedindo um novo fôlego para a actividade caritativa da Igreja. Mas o centro da sua reflexão programática estava na proposta de que “toda a actividade da Igreja”, incluindo a social e caritativa, “é manifestação dum amor que procura o bem integral do homem” – significativamente, a primeira parte do documento intitula-se “A unidade do amor na criação e na história da salvação”. Ou seja, o trabalho eclesial em favor dos necessitados radica num Deus que é amor. E deve testemunhar que “o amor é possível”.

Esta reflexão teria uma sequela na Caritas in Veritate (“Caridade na Verdade”), de 29 de Junho de 2009, no auge da crise económico-financeira iniciada no ano anterior. Enquanto dizia que toda a ajuda ao desenvolvimento deveria ser acompanhada de medidas para desenvolver e aperfeiçoar o Estado de direito democrático, Ratzinger acrescentava: “Perante o crescimento incessante da interdependência mundial, sente-se imenso – mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial – a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações.”

Em vários parágrafos do documento, aliás, Ratzinger como que antecipava várias ideias que seriam consagradas de forma mais veemente pelo Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti (“Todos irmãos”).

O escândalo dos abusos

Bento XVI na celebração da eucaristia na Praça do Comércio, em Lisboa, 11 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor.

Bento XVI na celebração da eucaristia na Praça do Comércio, em Lisboa, 11 de Maio de 2010. Foto © Daniel Rocha/Público, cedida pelo autor.

Entre os múltiplos temas que Bento XVI teve de afrontar como Papa, o escândalo dos abusos foi o que mais perturbou o seu pontificado. Nos oito anos no cargo, foram vários os encontros que protagonizou com vítimas – vários deles anunciados apenas depois de terem acontecido –, como vários foram os documentos em que falava uma linguagem até aí não vista da parte do magistério católico. A carta aos católicos da Irlanda, de Março de 2010, é o exemplo maior.

Ratzinger foi criticado por uma alegada falta de acção em relação a padres agressores enquanto era prefeito da CDF. Na realidade, só no final do pontificado de João Paulo II ele ficou com poderes para poder actuar e começou a tomar várias medidas, que depois continuou enquanto Papa – apesar de ele próprio ter sido acusado, numa investigação recente na Alemanha, de no mínimo ter tido atitudes em relação a um caso de um padre acusado de abusos enquanto era arcebispo de Munique. (ver 7MARGENS)

Em Fevereiro de 2012, um ano antes de renunciar, Bento XVI enviou uma mensagem aos participantes numa cimeira que debatia estratégias de combate à pedofilia e juntou académicos, psicólogos, responsáveis católicos e outros especialistas. Os abusos são uma “tragédia” para a Igreja e a atenção às vítimas deveria ser uma “preocupação prioritária”, dizia, naquilo que era já uma antecipação do que viria a acentuar-se com o pontificado de Francisco.

Foi a imensidão dessa tarefa e da necessária limpeza da casa – a Cúria Romana, em primeiro lugar – que o fez perceber que já não tinha a energia e a força anímica que se exigiam. Por isso, quis dar o lugar a outro.

No seu testamento espiritual, o agora de novo Joseph Ratzinger escreveu: “A todos aqueles que, de alguma forma, prejudiquei, peço perdão de coração.

“Último” Papa europeu, a escolha do nome Bento – invocando Bento de Núrsia, fundador do monaquismo ocidental, e o Papa Bento XV, protagonista da vontade de paz durante a Grande Guerra 1914-18 – traduz a preocupação com a decadência do cristianismo na Europa. Na véspera da morte de João Paulo II, o ainda cardeal Ratzinger proferira em Subiaco (sede da Ordem de S. Bento) um discurso sobre a Europa: “Temos necessidade de homens como Bento de Núrsia, que numa época de dissipação e de decadência se embrenhou na solidão mais extrema, conseguindo – depois de todas as purificações que teve de suportar – voltar à luz, regressar a Monte Cassino e fundar a cidade sobre o monte que, a partir de tantas ruínas, juntou as forças das quais surgiu um mundo novo. Bento tal como Abraão, tornou-se assim, pai de muitos povos.”

Foi na solidão que Bento XVI decidiu deixar o cargo no qual tentou ajudar a sua Igreja entre ruínas. Terá, no momento da sua morte e na sua fé, voltado à luz.



Sem comentários:

Enviar um comentário