ONU e Amnistia Internacional pedem investigações
Os bispos católicos brasileiros manifestaram-se “perplexos” com “os atos antidemocráticos” levados a cabo por centenas de apoiantes de Jair Bolsonaro, ex-Presidente do Brasil, que invadiram o Congresso, o Planalto e o Supremo Tribunal Federal (os três prédios mais importantes do poder em Brasília), neste domingo, 8 de janeiro. Também o Papa Francisco já expressou preocupação relativamente aos sinais de “enfraquecimento da democracia” no Brasil. Mas entre os representantes das igrejas evangélicas, as opiniões dividem-se. Há quem condene os ataques, quem os legitime, e até quem os tenha incentivado e participado neles.
“Máscara, vinagre, óculos de natação… E Deus será nosso escudo.” Assim escreveu Mari Santos, pastora da Igreja Ministério Internacional da Restauração, em cuja sede – na cidade de Manaus – o ex-Presidente Jair Bolsonaro chegou a participar em eventos religiosos durante a campanha. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, Mari “não só participou do vandalismo que tomou Brasília no domingo, como postou cada passo seu numa rede social”.
Também o cantor gospel Salomão Vieira, apontado como um dos principais organizadores das manifestações, terá publicado na última semana um vídeo a convocar aqueles que apelidou de “patriotas” para estar no Distrito Federal este fim de semana. O artista, que está entretanto a ser acusado de burla por venda de passagens aéreas falsas, fechou o seu perfil no Instagram após as manifestações.
O portal Fuxico Gospel confirma que estas manifestações contaram com “uma massiva participação de integrantes evangélicos” e descreve cenas de pastores e fiéis entoando louvores e falando em “línguas estranhas” durante as mesmas. Houve até quem evocasse a Batalha de Jericó, que representa uma das mais gloriosas vitórias dos israelitas quando conquistaram a terra de Canaã, descrita no Antigo Testamento, refere o site de notícias brasileiro.
“Dois pesos e duas medidas”?
Silas Malafaia, pastor evangélico que é deputado federal e apoiante assumido de Bolsonaro, publicou esta segunda-feira, 9 de janeiro, um vídeo no seu canal de Youtube em que condena a violência das manifestações, mas alerta que há “dois pesos e duas medidas” para o tratamento dado aos atos dos bolsonaristas, em comparação com o que foi dado no passado aos dos movimentos de esquerda, que também terão envolvido destruição de património e violência . “Nunca vi a imprensa, nem a esquerda, dizer que isso é ato golpista ou anti-democrático”, afirma. E deixa o aviso: “Não brinque nem massacre com o povo, que tem revolta popular”.
O também deputado federal e Presidente da bancada evangélica, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), comparou, nas suas redes sociais, as manifestações deste domingo com os protestos de 2013 iniciados por militantes de esquerda, para afirmar que “na democracia toda a manifestação tem um recado claro. O que é inaceitável é a violência e depredação do património público, não compactuo com esses atos”, afirmou, mas sem deixar, no entanto, de procurar justificar as manifestações, criticando implicitamente Lula da Silva: “Ver um descondenado virar presidente causa revolta!!! Deus tenha misericórdia do Brasil!”.
O mesmo pedido fez Estevam Hernandes, líder da Igreja Renascer em Cristo que chegou a estar presente em ações de campanha de Bolsonaro. “A manifestação somente é legítima quando é pacífica. Fora isso, torna-se o vandalismo que estamos presenciando. Minha oração é que Deus tenha misericórdia do Brasil”, afirmou à Folha de São Paulo no domingo à tarde. Mas para Hernandes, ao contrário do que acontece com Cavalcante, não há nada que justifique o que aconteceu este domingo. O pastor disse mesmo repudiar “essa forma grotesca e antidemocrática” de protestar, “porque Deus nos deu a paz de Cristo”. Pouco depois, durante um culto na noite de domingo, reiterou perante os fiéis que “esse não é o caminho da democracia, não é o caminho da vontade de Deus”, e acrescentou: “infelizmente as pessoas radicalizam e esquecem que só existe um caminho, que é o da oração. Oramos para que Deus interfira segundo a sua vontade”.
A democracia “precisa de ser protegida”
Do lado católico, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) manifestou-se nessa mesma tarde através da sua conta de Twitter, pedindo “serenidade, paz e o imediato cessar dos ataques criminosos ao Estado Democrático de Direito”. Os bispos defenderam não só que os ataques deveriam “ser imediatamente contidos” como os “seus organizadores e participantes responsabilizados com os rigores da lei”, acrescentando que “os cidadãos e a democracia precisam de ser protegidos”.
Pouco depois, também o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) emitia um comunicado pedindo “que todas as responsabilidades políticas, cíveis e criminais sejam apuradas e que os principais articuladores destes atos violentos sejam punidos com severidade”.
Para o Cimi, os “atos golpistas confirmam a herança de destruição, fascismo e autoritarismo que o governo do anterior presidente da República legou ao país”.
“O Cimi – recorda o comunicado – nasceu há 50 anos em plena Ditadura Militar e lutou junto aos povos indígenas e a toda a sociedade brasileira pela recuperação da democracia e dos direitos. Hoje, junto com toda a Igreja, as entidades pastorais, os povos originários, a sociedade civil organizada e todas as pessoas de bem, declaramos que não aceitaremos nenhum passo atrás nem abriremos mão daquilo que foi conquistado pela luta e pela entrega dos que nos precederam”, pode ler-se na nota.
Já nesta segunda-feira, durante a tradicional audiência ao corpo diplomático, o Papa Francisco manifestou a sua preocupação com o “enfraquecimento” da democracia, referindo as “crescentes polarizações políticas e sociais, que não ajudam a resolver os problemas urgentes dos cidadãos”.
“Penso nas várias crises políticas em diversos países do continente americano, com a sua carga de tensões e formas de violência que exacerbam os conflitos sociais”, afirmou o Papa, dando como exemplo os casos do Peru, Haiti e, nas últimas horas, o Brasil. “É preciso sempre superar as lógicas parciais e trabalhar pela construção do bem comum.”
ONU e Amnistia Internacional exigem investigações e responsabilização
Em declarações aos jornalistas, à margem de uma conferência sobre ajuda humanitária no Paquistão, a decorrer em Genebra, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse ter ficado “chocado” com os acontecimentos de domingo no Brasil, mas destacou que confia no país e nas suas instituições, assinalando que a vontade do povo brasileiro e o funcionamento da democracia devem ser respeitados.
O embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Costa Filho, agradeceu esta e outras manifestações de apoio e solidariedade recebidas e declarou que o governo brasileiro repudia “com a maior veemência a violência cometida ontem contra os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em Brasília”.
Ronaldo Costa Filho afirmou que está “confiante de que a força das instituições brasileiras permitirá superar os violentos e lamentáveis incidentes de ontem e avançar com a força das instituições democráticas”.
Segundo noticia o site da ONU News, “pelo menos oito jornalistas foram agredidos ou tiveram os seus equipamentos destruídos” na sequência destas manifestações. O chefe do Escritório de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, sublinha que a violência deixou os profissionais impossibilitados de cumprir a sua “função essencial de informar os brasileiros e o mundo sobre o que estava a acontecer” e alerta que os ataques confirmam “uma tendência de aumento das agressões físicas contra jornalistas num contexto de elevados níveis de violência política”.
Assim, Turk pediu às autoridades para que conduzam investigações rápidas, imparciais, eficazes e transparentes sobre a violência de domingo e responsabilizem os envolvidos. O alto comissário afirmou ainda que está pronto para apoiar o novo governo a tratar das questões de direitos humanos que o Brasil enfrenta.
Em comunicado enviado na tarde desta segunda-feira às redações, a Amnistia Internacional reforçou o pedido da ONU, apelando a que “investigações céleres, imparciais e efetivas que sejam conduzidas pelas instituições competentes para que os atos deste domingo, 8 de janeiro, sejam devidamente apurados”.
“A invasão e depredação de prédios públicos, a destruição de documentos, violações da segurança e integridade física de jornalistas que acompanham os eventos e de agentes das forças de segurança que foram agredidos por extremistas devem ser investigadas”, reitera a nota da organização não governamental. “A destruição de prédios públicos que representam instituições dos Três Poderes do Estado deve ser apurada pelos órgãos competentes e os responsáveis devem ser investigados, processados, julgados e sancionados, em conformidade com os parâmetros internacionais de direitos humanos”, conclui.
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