O motivo que levou o Tribunal Constitucional a declarar a
inconstitucionalidade de algumas normas do decreto aprovada pelo Parlamento que
vem legalizar a eutanásia e o suicídio assistido foi a invocada violação do
princípio da determinabilidade da lei, como corolário dos princípios do Estado
de Direito e da reserva de lei (reserva de lei no sentido em que determinadas
matérias, pela sua relevância, devem ser reguladas por lei e não estar
dependentes de decisões casuísticas). Esse princípio de determinabilidade da
lei liga-se a exigências de certeza e segurança: todos devemos saber
previamente com o que podemos contar no que à aplicação de uma lei diz
respeito. Foi essa, precisamente, a questão levantada pelo Presidente da
República no seu pedido de fiscalização, no que concerne a dois conceitos: o de
“sofrimento intolerável” e o de “lesão definitiva de gravidade extrema de
acordo com o consenso científico”. O Tribunal (a maioria dos juízes)
considerou que este segundo conceito (“lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”) não
era suficientemente determinado, mas considerou que o primeiro (“sofrimento intolerável”) já o seria
(contra a opinião do próprio relator do acórdão)
Há que referir que o Tribunal não
considerou a legalização da eutanásia e do suicídio assistido contrária ao
princípio da inviolabilidade da vida humana, lapidarmente consagrado no artigo
24.º, n.º 1, da Constituição, artigo que encabeça todo o elenco dos direitos
fundamentais. Mas essa é a questão que, mais do que qualquer outra, está em
causa nessa legalização. A Constituição portuguesa não limita o princípio da inviolabilidade
da vida humana; essa inviolabilidade não deixa de vigorar em fase terminais da
vida, quando a vida é marcada pelo sofrimento, a doença ou a deficiência, nem
deixa de vigorar com o consentimento do seu titular. Nenhuma dessas limitações
a esse princípio está prevista na Constituição, que o consagra de modo
absoluto. Nem a ele se sobrepõe a autonomia individual, pois a vida é o
pressuposto dessa autonomia (sem vida, não há autonomia).
Há que reconhecer que o uso de
conceitos indeterminados em normas jurídicas é algo de frequente, e até
inevitável, pois toda a variedade e complexidade da vida real é inabarcável por
uma qualquer lei geral, por muito pormenorizada que esta seja. Mas há domínios
em que esses conceitos devem ser o mais possível evitados. É o que sucede com o
direito penal: precisamente porque está em jogo a aplicação de uma pena, que
pode ser a de prisão. Há que saber com precisão e sem incertezas o que pode, ou
não, ser considerado crime e levar à aplicação de uma pena.
Convém, porém, salientar uma outra
questão. No caso da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, o uso de
conceitos indeterminados acarreta uma consequência e um risco que vai ainda
mais longe do que o uso de conceitos indeterminados noutras normas penais. Não
é apenas a aplicação ou não aplicação de uma pena (que pode ser a de prisão)
que fica dependente de critérios incertos e subjetivos, é a decisão de
provocar, ou não a morte de uma pessoa que fica de dependente de critérios
incertos e subjetivos. No fundo, trata-se de uma questão “de vida ou de morte” que ficará dependente desses critérios. É como
se a aplicação de uma pena de morte dependesse da interpretação de conceitos
indeterminados,
Mas, verdadeiramente, não me parece
que seja possível legalizar a eutanásia e o suicídio assistido sem recorrer a
conceitos (mais ou menos) indeterminados. Por outro lado, a indeterminação
desses conceitos é uma das razões porque também é impossível conter a aplicação
da lei e restringir tal aplicação a casos extremos e excecionais. Nunca tal se
verificou nos países que enveredaram por esse caminho de legalização. A chamada
“rampa deslizante” é inevitável não
só pelo uso desses conceitos indeterminados, mas, sobretudo, porque essa
legalização representa o derrube de um alicerce de um edifício (esse alicerce é
o da inviolabilidade da vida humana, ou a proibição de matar) que, mais tarde
ou mais cedo, há de desmoronar E isso dá-se través do uso desses conceitos
indeterminados, de práticas contrárias à lei mas toleradas, ou de futuras e
expectáveis alterações legislativas.
Podemos verificar como o uso de
conceitos indeterminados é inevitável e conduz sempre à “rampa deslizante” através da análise da nova versão do projeto de lei
que deu origem aa decreto agora aprovado, que se aproxima da lei espanhola também
recentemente aprovada. Esta nova versão densifica (isto é, procura tornar menos
indeterminados) conceitos como os de “sofrimento
intolerável” e de “lesão definitiva
de gravidade extrema”.
Fá-lo deste modo:
«Art. 2.º
(…)
e)
Lesão definitiva de gravidade extrema: lesão grave, definitiva e amplamente
incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de
apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária,
existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham
a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa;
f)
Sofrimento: um sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de
doença grave ou incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com
grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado
intolerável pela própria pessoa;
(…)»
É evidente que estas definições
permitem um vastíssimo alargamento das situações em que será lícita a prática
da eutanásia e do suicídio assistido, situações que vão muito para além da fase
terminal de uma doença e se enquadram antes em doenças crónicas ou
incapacitantes. Será muito desajustado falar a este respeito, como sucede até
em alguns projetos de lei, em “antecipação
da morte” (outro dos vários eufemismos utilizados pelos partidários da
legalização da eutanásia e do suicídio assistido), como se esta morte estivesse
próxima (e se tratasse apenas de escolher o modo como essa inevitável morte
ocorreria). Pode ser praticada a eutanásia não apenas em situações de doença
terminal, mas também em situações de doença incapacitante, e estas seja qual
for o tempo de sobrevida (podem ser anos ou décadas), desde que o doente se
torne dependente de outra pessoa (um “peso” para os outros).
A indeterminação
de conceitos mantem-se nas referidas definições: “lesão grave” (a definição
repete a expressão a definir!), “amplamente
incapacitante”, “probabilidade muito
elevada”, “melhoria significativa”,
“doença grave”, “grande intensidade”.
Há que salientar
também o seguinte.
De acordo com estas definições, a
determinação do conceito de “sofrimento
intolerável” depende, em última análise, da própria pessoa que dele padece
(“sofrimento… considerado intolerável
pela própria pessoa”). Entramos, assim, num campo da absoluta
subjetividade. Na verdade, estados de sofrimento semelhantes poderão ser mais
ou menos facilmente tolerados por umas pessoas, mas não por outras. O critério
é, em última análise, pessoal e subjetivo, não avaliável objetivamente. E o
sofrimento que está em causa poderá ser físico, psicológico e espiritual (sem
que se esclareça o que poderá significar “sofrimento espiritual”).
Compreende-se este recurso a critérios em última análise
subjetivos: se partimos do primado da autonomia individual, é lógico que
prevaleçam tais critérios. Deixar a decisão final sobre a gravidade (ou
intolerabilidade) do sofrimento nas mãos do médico, que recorreria a critérios
objetivos (o que seria uma forma de limitar a aplicação alargada da lei),
contrariaria tal primado da autonomia: a decisão de viver ou morrer dependeria
não do próprio, mas de um terceiro, não estaríamos perante um exercício de
autonomia, mas de heteronomia. E nalguns casos, nem sequer muita objetividade
poderia verificar-se, sendo a subjetividade da pessoa doente substituída pela
subjetividade do médico. Seja como for, está deste modo escancarada a porta à “rampa deslizante”.
Em suma, somos conduzidos por várias vias a um “beco sem saída” de que só podemos escapar
“cortando o mal pela raiz”, isto é,
recusando a legalização da eutanásia e do suicídio assistido.
Pedro Vaz Patto
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