É motivo de reflexão o resultado de uma recente sondagem que revelou que mais de metade (51%) dos franceses não acredita em Deus. Sondagens anteriores já se aproximavam desse resultado, mas ainda não havia sido ultrapassada a barreira dos 50%. Estes descrentes não se identificam com qualquer religião, nem com a categoria que costuma designar-se como de crentes sem religião (isto é, que acreditam nalguma forma de Transcendência sem se identificar com alguma das religiões instituídas). Resultados semelhantes decorrem de outras sondagens de países europeus, sobretudo do Norte (não tanto do Sul ou do Leste).
Quando
se define o que é próprio e específico da espécie humana e a distingue de
outras espécies animais, com frequência se aponta a abertura ao sagrado e à
religião como característica essencial e determinante. Muito diversificadas
modalidades de religião caracterizam culturas humanas de todas as latitudes e
épocas históricas. É assim desde a pré-história, em que os sinais da presença
humana são, precisamente, os que denotam alguma forma de religiosidade. Numa
região do país minha familiar, o folheto de divulgação de vestígios
pré-históricos aí existentes (sobretudo monumentos fúnebres) tem, justificadamente,
por título: “Crença na Eternidade”.
Será
que estamos agora perante as primeiras sociedades e culturas em que a crença
religiosa se torna minoritária?
É
verdade que a situação de outras áreas do globo é, neste aspeto, muito
diferente da da Europa, mas foi até deste continente que partiu a difusão do
cristianismo para essas outras áreas. Podemos estar perante um fenómeno
superficial e passageiro, e que a natureza humana e a sua atávica abertura à
religião nunca poderá ser abafada e acabará por vir ao de cima. Veja-se como a
tentativa de criar sociedades e culturas ateias pela imposição de regimes
totalitários no século passado fracassou em absoluto e se virou contra a
liberdade e a dignidade humanas que se pretendia enaltecer. Já se tem dito que
o sagrado pode assumir formas distorcidas (como as várias formas de idolatria)
ou permanecer oculto durante algum tempo, mas o seu desaparecimento nunca será
total ou definitivo.
É
verdade que a secularização extrema de vários países europeus não significa
necessariamente que todas as raízes culturais cristãs deles tenham desaparecido
(pelo menos por enquanto). Essas raízes revelam-se, por exemplo, na genérica
sensibilidade perante exigências de paz, fraternidade e solidariedade social.
Mas
talvez não imaginemos ainda o que possa significar de inédito uma sociedade e
uma cultura em que a maioria das pessoas não acredita em Deus.
Do
que não há dúvidas é que se torna cada vez mais urgente os apelos a uma “nova
evangelização”, de que muito falou o Papa São João Paulo II referindo-se
especialmente à Europa, e de que também tem falado o Papa Francisco, que
iniciou o seu pontificado apresentando como base do seu programa o anúncio da
alegria o Evangelho na exortação apostólica Evangelii
Gaudium.
Essa evangelização não pode,
obviamente, reduzir-se a uma dimensão horizontal, à busca da fraternidade
humana, da justiça e da paz. São dimensões importantes, que não dispensam,
porém, a abertura a Deus, porque o apelo do Evangelho é o do amor a Deus e ao
próximo, não a nenhum deles sem o outro.
Como
salientou o Papa Francisco na encíclica Fratelli
tutti, há que considerar o «fundamento
último» da fraternidade. «Sem uma
abertura ao Pai de todos, não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo
à fraternidade. Estamos convencidos de que só com esta consciência de filhos
que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós» (n. 272).
Um
perigo de uma sociedade e uma cultura sem abertura a Deus é o do
enfraquecimento das bases da ética. É célebre a frase de uma personagem de
Dostoiévski: «Se Deus não existe, tudo é
permitido». O homem tornar-se-ia legislador de si próprio, senhor do bem e
do mal. Poderá não ser sempre assim, se tivermos presente a lei natural, aquela
que, como diz São Paulo, está inscrita no coração de cada homem (mesmo de quem
não foi iluminado pela revelação divina) como lei de que ele não pode dispor.
Mas não há dúvida de que essa lei natural também pode ser ofuscada pelas
limitações humanas sem a revelação divina e é por isso que as sociedades
secularizadas de hoje se vão tornando insensíveis a muitas ofensas claras e
graves a essa lei (veja-se a eliminação sistemática de nascituros pelo aborto,
muitas vezes apenas com base na deficiência destes). Recordo bem o que me disse
um dia um político com quem participei num debate. «Sou agnóstico, mas receio muito uma sociedade que se torna agnóstica»
Uma
sociedade e uma cultura sem Deus também não encontram sentido para o sofrimento
e a morte, de que nunca poderemos escapar, por muito que a corrente do transhumanismo
pretenda ilusoriamente levar-nos a pensar o contrário. A pandemia que tem
atingido o mundo inteiro (países mais ou menos desenvolvidos, ricos e pobres)
veio revelar isso mesmo, apesar de todos os progressos da ciência, que também
não deixaram de nos ser úteis para minorar as suas consequências. Fomos todos confrontados, de forma mais
chocante e repentina do que habitualmente, com a inevitabilidade da morte e só
a busca de um sentido para ela nos permite vencer o desespero. A verdade é que
a sondagem a que inicialmente me referi, relativa à descrença dos franceses,
não revela que estes, que foram sobre isso questionados, tenham atenuando essa
descrença com a pandemia. Outros inquéritos ou sondagens deram, porém, outros
resultados.
Diante
dos resultados desta sondagem, ainda mais oportunas se tornam estas palavras do
Papa Francisco, de 23 de setembro. aos representantes das conferências
episcopais europeias:
«Muitos na
Europa pensam que a fé seja algo já visto, que pertence ao passado. Porquê?
Porque não viram Jesus em ação nas suas vidas. E muitas vezes não O viram,
porque nós não O mostramos suficientemente com as nossas vidas. Pois Deus vê-Se
nos rostos e nos gestos de homens e mulheres transformados pela sua presença.»
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