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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Símbolos

Estava na morosa fila do banco, este claro sintoma de que ou os brasileiros são masoquistas, ou pagam coisas demais por boletos ou o sistema bancário tem péssimo atendimento. Ou seria uma pitada de cada? Para mitigar a espera procuro ter um livro à mão e sempre faço um esforço extra para me concentrar. Uma senhora, imediatamente atrás de mim, me perguntou como conseguia ler naquela condição. Com cara de não muitos amigos respondi que me esforçava para isto. E voltei à condição de um silêncio engatilhado, como li na obra Mina R, com relatos da nossa participação em terras da Itália na segunda guerra mundial. Deu-se então o inesperado.

A despeito do que respondera, aquela senhora disparou a falar, tornando impossível a leitura até mesmo de uma receita de bolo. Fiquei sem entender o que ela depreendera de minha resposta. Teria dito a ela que somente leio enquanto não aparece alguém com quem  possa conversar? As filas nos bancos são símbolos de indiscrição. Recintos de romaria dos endividados e de entretenimento para os remediados, os bancos são campos minados. Uma vez enredado neles o sujeito não pisa em ovos, pisa em juros. Os bancos são símbolos imbatíveis de poder.

Existiu em Israel, segundo o Antigo Testamento, num tempo sem governo constituído, após a morte de Josué e antes do início da monarquia, um juiz, homem enviado por Deus, com coragem e força extraordinárias. Filho de um casal estéril, que recebeu a visita de um anjo anunciando seu nascimento, Sansão tinha nos cabelos a força. Metáfora relacionada à tradição religiosa segundo a qual um consagrado a Deus nada pode deduzir de si, nem mesmo cortar o cabelo. Era uma questão de fidelidade a Deus. Num descuido, Sansão fragilizou-se e deu a chance para que seus inimigos o dobrassem. Foi infiel e pagou com o preço da escravidão. Trata-se de uma história e tanto, que alerta o povo de Israel sobre o que acontecerá se abjurar de seu corpo de crenças. Não é à toa que os judeus mantêm rico simbolismo, que os une, identifica e irmana. O resto da história é conhecido. Desprovido de sua cabeleira, Sansão teve os olhos perfurados e encerra seus dias como símbolo da força, ainda que cega.

Venho de um tempo em que as previsões do clima eram tão amadoras quanto admiráveis. Falava-se da aparência do chovedor, das nuvens com formato de rabo de galo, da neblina na madrugada alta, na florescência dos maricás, na atividade das formigas, da sensação barométrica, da água escorrendo pelas paredes, a denunciar uma atmosfera saturada e assim previa-se a chuva, as viradas e o início das estações. Os homens tinham mais intimidade com a natureza, que observavam sem pressa. A disponibilidade de previsões em veículos digitais, cada vez mais detalhadas e, não raro, erradas, nos afastou da observação e de seu nobre rebento, a contemplação. Faz parte das comodidades tecnológicas. Quando passamos a usar somente teclados, arruinamos a caligrafia. Por isto a grande maioria hoje parece ter letra de médico ...

Prossigamos com símbolos e falemos de filhos maltratados, símbolos de abandono e desamor. Pergunte a um terapeuta o que se deve dizer a uma criança abandonada que indaga pela própria mãe e ouvirá que em hipótese alguma deve-se arrasar sua imagem. Mesmo que tenha sido bandida, promíscua, viciada e muito, muito cruel. Não faz bem a ninguém saber-se oriundo de má fonte. Qual a lógica? Como pode tornar-se bom alguém nascido de tais entranhas?

Um ventre mau é símbolo tão devastador que pode condenar uma criatura que assim identifique sua origem. Tão nocivo que talvez explique em parte as desventuras de nosso país. Em terra explorada, vivemos sob símbolos negativos. Quando indagamos sobre nossas origens, de quem dizemos descender?  De portugueses, que consideramos burros e toscos, de negros forros, humilhados e incompetentes, de índios preguiçosos e de degredados europeus. Exagero ou é mais ou menos assim? Ou escutamos avaliações generosas? Nos acreditamos a fina flor da ralé, a escumalha das gentes e cremos que nossas figuras históricas são  lastimáveis.

Como chegamos nisto? Possivelmente fomos induzidos, lenta, inconsciente e insistentemente, a atribuir aos estrangeiros qualidades que não possuímos. E agora? Como reverter séculos de soterramento de nossas virtudes? Difundindo a biografia de nossos melhores, seus fracassos, suas lutas e sobretudo suas superações. Só então poderemos deixar de lado símbolos que não são nossos. Não por despeito, nem por revanche. Apenas porque não precisaremos mais deles.


J. B. Teixeira



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