Quando me encontrava a organizar um armário que há muito tempo não
utilizava saltou um disco em vinil que caiu no chão. Que saudades do tempo do
vinil. Apanhei o disco e vi com alegria que se denominava “Eu vi um Sapo”.
Fiquei mesmo feliz. Há já algum tempo tinha querido ensinar à minha neta esta
música e não me recordava da letra. Resolvi colocá-lo no gira-discos para ver
se ainda se encontrava audível. E estava mesmo! E o coro de Santo Amaro de
Oeiras cantava: “Eu vi um sapo num guardanapo. Estava a papar um bom jantar…”.
Não podia de todo regressar ao passado. Contudo poderia referir à minha neta os
excelentes serões passados em família, em que o seu pai tinha a sua idade.
Tenho a certeza que ficará feliz e colocará imensas perguntas. Também
cantaremos juntas. Na verdade é de algum modo, ir buscar as memórias, as
tradições. Trazê-las para o momento presente e, através da minha neta,
projetá-las no futuro. Que bom que foi ter encontrado o disco ainda a tempo de
corrigir um lapso de memória!
Continuei a minha organização. Dentro de uma pequena caixa
encontrei um coração em pedra malaquite. Tão verde e bonito. Recordo que o
comprei em Kinshasa, na República do
Zaire, numa loja, há muitos anos atrás. Na altura referiram que era utilizada
em pinturas verdes na antiguidade enquanto pigmento mineral. Achei-o tão belo,
com uma cor linda, que o adquiri. Recordei entretanto que andava precisamente à
procura de um coração para oferecer a uma amiga que vai completar brevemente os
99 anos. Aprecia corações. Também África. Refere com frequência os bons
momentos vivenciados em Luanda, que não esquecerá jamais. Será uma excelente
oferta, que a irá fazer feliz, enquanto prova de carinho e de reconhecimento
por toda a amizade que nos tem dedicado ao longo de muitos anos, e que é
recíproca.
Bem, torna-se importante continuar a organizar o armário. Acabaria
por encontrar noutra caixa um relógio de pulso feminino, parecia ser belle époque. Quando me foi oferecido
não gostei muito. Agora, volvidos muitos anos, parecia mais bonito. Valia a
pena ver se tinha arranjo. Em caso afirmativo poderia oferecê-lo à minha neta
no Natal. Como o tempo passa! Já a pensar no Natal... Hoje quando fui fazer uma
caminhada vi com agrado que já havia inúmeras folhas no chão com o habitual tom
castanho/avermelhado a lembrar que estamos no outono. Mas ao meu pensamento,
fazendo a ligação ao Natal e ao relógio, recordei um Natal bem frio, com muita
neve, passado na República Checa, mais precisamente em Praga. Foi uma ideia de
uma das minhas irmãs. O seu marido não se encontrava muito bem de saúde e achou
que lhe faria bem. Claro que queria influenciar a família no sentido de aceitar
a sua proposta, ou não fosse época de Natal. Falou-nos da beleza da cidade, do
Menino Jesus de Praga, da famosa ponte Carlos VI sobre o Rio Moldava, enfim,
acreditámos piamente na beleza da cidade mas colocámos alguma resistência por
ser época do Natal. Mas nada a demovia da sua ideia. De tal modo que
acabaríamos por anuir, talvez por cansaço. Volvidos alguns anos, reconheço a
esta distância que foi uma boa decisão. Apesar de estranharmos a ausência da consoada
com toda a família, a gastronomia tradicional do país, bem como a novidade, a
beleza da cidade fascinou-nos por completo. Por outro lado a família que se
pode deslocar esteve sempre junta, unida, estreitando-se os laços, fortalecendo
as boas memórias. Desconhecíamos de todo que seria o último Natal que
passaríamos juntos. Esta minha irmã e o seu marido, se Deus quiser, já se
encontram a gozar da vida eterna no Céu. Ainda bem que decidimos ir. Fomos
muito felizes em Praga.
Rezámos em frente ao Menino Jesus de Praga. Ainda tenho em meu
poder uma pagela que refere ter sido revelada por Maria Santíssima ao Venerável
Padre Cirilo, OCD ”…De ora em diante quero servir-Vos com toda a fidelidade e
por amor de Vós amar o meu próximo como a mim mesmo. Infante omnipotente,
renovo a minha súplica, ajudai-me, socorrei-me nesta necessidade, concedei-me a
graça de possuir-Vos eternamente com Maria e José, e adorar-Vos com os Santos e
os Anjos na pátria celeste”.
Mas por esta ocasião cumpre-me fazer a ligação com o relógio. Em
Praga usufruímos ainda, por diversas vezes, da beleza do seu relógio
impressionante Relógio Astronómico, O Orloj,
o mais antigo do mundo ainda em funcionamento, situado no Edifício da Câmara
Municipal na Praça da Cidade Velha de Praga. Constitui uma das principais
atrações de Praga, onde a cada hora se pode assistir ao desfile dos doze
Apóstolos, bem como de outras quatro personagens: o Turco, a Avareza, a Vaidade
e a Morte. Além de marcar as horas, também indica as fases da lua e o movimento
das estrelas. Calcula-se que esta obra-prima tenha sido criada em 1410 e
restaurada em 1490 pelo relojoeiro Mestre Hanus.
O relógio é formado por três componentes principais: uma esfera astronómica que
indica as horas e a posição do Sol e da Lua; uma esfera em medalhões que
representam os meses e um mecanismo que mostra aos espetadores a cada hora, a
procissão dos Apóstolos.
Existe uma conhecida lenda sobre esta obra de arte que possui um
cariz especial. A lenda refere que quando o Mestre Hanus concluiu o relógio, foi supostamente cegado pelas autoridades
da cidade com o objetivo de que não pudesse reproduzir esta obra-prima noutro
local ou eventualmente, se viesse a construir outra ainda melhor. Consta ainda
que o Mestre Hanus antes de falecer
danificou a peça por vingança. Todas as pessoas que a tentavam consertar
morriam ou enlouqueciam. Na verdade, enquanto lenda, ninguém sabe ao certo o
que aconteceu. Em 1961, foi descoberto um documento que refere que a peça tinha
sido criada por Mikulas de Kadan em
colaboração com o astrónomo Jan Sidel.
Seja como for a peça é lindíssima, uma preciosidade intemporal.
Bem, chega de recordações e de organização do armário, que tem
ainda muito para contar. Se não o transmitir à família, um dia constituirão apenas
meros objetos sem história, sem passado, sem presente, sem futuro.
Maria Helena Paes |
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