(A propósito de Moinho da Memória, de Carlos A. Moreira Azevedo)
Começo por uma pequena memória dos anos recentes: com frequência, quando publicavam um documento sobre questões sociais ou políticas, os bispos justificavam a sua intervenção com uma expressão quase repetida: “Na fidelidade à nossa missão…”
Esta frase traduzia um quase pedido de desculpas público ou a necessidade de legitimar a intervenção num terreno que muitas vezes e durante séculos foi mutuamente lavrado pelas hierarquias cristãs e pelos governantes ou líderes políticos. E refiro-me tanto às hierarquias católicas e ortodoxas, como também às protestantes, anglicanas ou evangélicas.
É que essa intromissão mútua esqueceu a máxima de Jesus “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. E tornou-se um pecado grave ao longo dos últimos 17 séculos, desde o Édito de Milão e a progressiva “constantinianização” do cristianismo – e esse é um dos temas que o livro trata, num texto (o do capítulo 3) que me parece ser uma das chaves de leitura possíveis desta obra.
A frase dos bispos a que aludi já não é tão usada mas, ainda na última carta pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, CEP (“Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja”) ainda se escreve, logo no início, que os bispos se movem pelo “desejo de ajudar os católicos do nosso país e tantos outros portugueses a abraçar os principais desafios com que hoje se deparam no mundo em geral e especialmente em Portugal e na Europa”.
(Podemos ver, no mínimo, como interessante a necessidade que os bispos sentem de nos “ajudar”, enquanto cidadãos e católicos: preferia que eles quisessem partilhar reflexões; eu também poderia dizer que, por vezes, sinto igualmente a necessidade de ajudar a CEP em alguns diagnósticos; por exemplo, durante os anos dos governos sujeitos à troika, gostaria de “ajudado” com palavras mais assertivas sobre a pobreza e o desemprego ou acerca da condenação a que os portugueses das classes mais baixas estavam a ser sujeitos, em detrimento dos grandes empresários, financeiros e outros que tais…; ou, nesta última carta de 2 de Maio, se há vários aspectos muito positivos, também gostaria de ter “ajudado” a uma reflexão mais aprofundada sobre a emergência climática – que pode ser decisiva para o nosso futuro comum –, ou sobre os perigos que espreitam a Europa com o crescimento de governos e governantes proto-fascistas…)
Regressando ao livro: demasiadas vezes ao longo da história, o cristianismo e a política se cruzaram, com interesses por vezes coincidentes, outras antagónicos; mas se esse cruzamento hoje nos merece muitas críticas de partida, é porque ele se fez quase sempre a partir do ponto de vista da luta pelo poder; foi assim com a tutela de reis e imperadores sobre a escolha de papas e bispos; foi assim com decisões de estabelecer tribunais que condenavam pessoas à morte ou de fazer a guerra em nome de Deus (não são só os israelitas ou os muçulmanos que carregam essa história aos seus ombros…); e muitas outras…
Política e a religião não podem, não devem ignorar-se uma à outra: fazem parte da mesma experiência humana e, na perspectiva cristã, que é aquela que interessa a propósito deste livro, ambas devem coincidir na busca do bem comum. Então, como resolver a equação de, recusando uma lógica constantiniana, ser fiel à proposta evangélica? É isso que este livro nos ajuda a entender.
O Espírito como lugar carnal da utopia
De que livro falamos, então? Estamos perante uma colectânea de textos já antes publicados em revistas ou pronunciados em conferências, organizada em dez capítulos correspondentes a outros tantos estudos. Segue uma ordem que poderíamos definir como “cronológica”, desde questões que se colocaram nos primeiros séculos de cristianismo até à actualidade.
Os três primeiros capítulos tratam o culto do Espírito como lugar carnal da utopia; a simbologia cristológica da pedra angular como referência para o serviço à comunidade; e “a necessidade da Igreja sair do paradigma constantiniano”; no final, dois dos últimos capítulos tratam da génese, intuições e objectivos do II Concílio do Vaticano; e do papel da Igreja no diálogo cultural.
Pelo meio, há outros cinco estudos sobre temas, personagens ou épocas mais específicos: o modo como os núncios da primeira metade do século XVIII olhavam para o patriarca de Lisboa (a que se referiam como “macaco do Papa”); a história do bispo Joaquim de Meneses e Ataíde, do Funchal (início séc. XIX), reveladora das lutas pelo poder no interior da estrutura eclesiástica; do encontro do Papa Paulo VI com os dirigentes dos movimentos de libertação das antigas colónias; da dinâmica inovadora introduzida pelo primeiro bispo da Beira (Moçambique), Sebastião Soares de Resende; e da crítica ao regime político feita pelo bispo do Porto António Ferreira Gomes. (Neste leque, a figura do bispo do Porto da transição dos séculos XIX-XX, António Barroso, ficaria também aqui muito bem; mas, sobre ele, já o Autor publicou uma biografia e acabou de publicar algumas das cartas que D. António Barroso trocou com responsáveis de estruturas do Vaticano).
Esta poderia ser, portanto, outra arrumação possível: uma primeira parte sobre alguns paradigmas e grandes linhas; outra, sobre o modo como alguns episódios ou pessoas concretas traduziram esses paradigmas.
Algumas referências finais, então, sobre essas duas grandes áreas do livro.
Já ficou dito que o terceiro capítulo aborda “a necessidade da Igreja sair do paradigma constantiniano” e essa parece-me uma das chaves de leitura possíveis desta obra. Poderia, até, ser a abertura, se a organização fosse outra.
O processo de constantinianização do cristianismo vai-se consolidando ao longo do século IV, desde o Édito de Milão (13 de Junho de 313, dando liberdade aos cristãos) até ao édito de Teodósio em 28 de Fevereiro de 380, que faz do cristianismo a única religião do império. Mas atinge o seu auge com Justiniano, imperador romano do Oriente (527-565), que nele assume a convergência do poder imperial e religioso numa só pessoa.
A viagem que o texto faz desde o paradigma da simbiose entre as duas realidades até à separação recente entre religião e Estado laico resume bem os dilemas e as contradições que se colocaram aos cristãos ao longo da História. E mostra-nos que ainda estamos a pagar pesadas facturas por esses erros históricos, por vezes compreensíveis na mentalidade do tempo, mas que nunca deveriam ter sido aceites pela comunidade eclesial. (Aliás, houve cristãos que o recusaram: muitos anacoretas e eremitas, padres do deserto, como o texto recorda; outros que recusaram o serviço militar ao imperador, antecipando aquilo que hoje é a proposta de não-violência activa e dos objectores de consciência ao serviço militar; muitos fundadores de ordens religiosas, com os seus apelos a vidas mais despojadas e evangelicamente centradas…)
O Imperador a controlar a Igreja, a Igreja a controlar o Império
Três exemplos retirados do livro, para exemplificar esse processo, esse trajecto e essas facturas:
– Acerca da formação de uma ética política cristã e de como o Imperador passou a controlar a Igreja e esta a controlar o Império: “O primeiro concílio ecuménico de Niceia (325) foi convocado pelo Imperador, no seu grande palácio (…). Constantino assistiu pessoalmente a grande parte das sessões e influenciou as decisões, que foram aprovadas por ele. [Mais tarde] a política imperial foi intolerante [para com os não-cristãos], mas como agora não era aos cristãos que tocava sofrer, a Igreja confirmou o Império e até fomentou o sentimento antipagão, com alguma violência contra crenças.” (p. 42)
– Sobre a autoridade na Igreja e os seus símbolos: “Ao aceitarem ser representantes da religião imperial [os bispos] assumem privilégios e competências, adquirem um lugar no protocolo da corte, com títulos e direitos cívicos. Aqui está a origem das insígnias que acolheram, como o pálio, vestes especiais, anel, etc. Segundo o lugar, tinham direito a incenso, beija-mãos, etc. Muitos dos rituais foram importados diretamente do cerimonial da corte, nos últimos anos do império. (…) o Papado avança nos séculos IV e V para uma máxima potencia espiritual-religiosa e política. Este centralismo e monarquismo significam uma grande mudança em relação à organização sinodal e à estrutura da communio” – e esse recurso ao poder político centralizado levará às rupturas de 1054, entre o Ocidente e o Oriente, e do século XVI, entre catolicismo e protestantismo (pp. 47-49).
– Acerca da redução da religião ao culto: “É impressionante como até os fundamentos bíblicos que assumem as formas cultuais da Igreja, a partir do século IV, sejam exclusivamente do Antigo Testamento, deixando no esquecimento a crítica feita por Jesus e a novidade litúrgica dos primeiros cristãos. Será o Antigo Testamento a inspirar as vestes, a linguagem. É do Antigo Testamento que vem a pureza dos sacrifícios, dos sacerdotes, dos rituais. À vertente veterotestamentária juntaram-se práticas religiosas de origem pagã, ausentes do Novo Testamento. Basta recordar o culto dos mártires, dos defuntos, das relíquias, das peregrinações, a visão milagreira, o recurso à magia. Importa dizer que alguns bispos criticaram tais costumes e exortaram à verdade da conversão, à forma cristã da verdadeira piedade.” (pp. 50-51)
A “preferência clara” de Jesus “pelos que não contam no plano social”
Este capítulo completa-se, na minha perspectiva, com o referente ao Concílio. O Autor recorda as duas hermenêuticas possíveis: aquela que faz uma leitura teológica dos 16 textos como uma continuidade em relação aos anteriores; e aquela que considera que a dinâmica conciliar é também um acontecimento, que faz muitas rupturas com o passado e cria um espírito que se coloca a si mesmo a exigência da renovação permanente; situo-me nesta perspectiva, porque entendo que a leitura dos sinais dos tempos sugerida por Jesus no Evangelho a isso impele; e porque, se ficássemos pela letra dos documentos, ainda hoje estaríamos a celebrar muitas partes da missa em latim…)
No horizonte do livro, este texto sobre o Vaticano II coloca a questão da democracia (o Concílio é preparado de forma mais democrática que nunca), do lugar da Igreja numa sociedade plural (a Igreja “tinha-se tornado um corpo estranho num mundo profundamente alterado”) e da possibilidade do debate no interior das comunidades cristãs (João XXIII “não tinha medo dos conflitos”).
Os dois capítulos citados abrem horizontes para os restantes e para os diferentes modelos de intervenção política dos cristãos. Sobre o Espírito Santo, o Autor destaca a importância da dimensão profética e cita Dietrich Bonhoeffer: “Talvez hoje mais do que nunca, o Espírito há-de ser encontrado na matéria, na realidade concreta e não na ‘espiritualidade’”. Uma tradução possível desta frase possa ser lida nas tradições do culto português do Espírito Santo, com as preocupações da partilha com os mais pobres. E, acerca de Cristo como pedra angular, nota: “O Novo Testamento mostra esta preferência clara pelos que não contam no plano social.”
Sobre o patriarca de Lisboa Tomás de Almeida, que procurava imitar o fausto, o luxo e as hierarquias do Papa em Roma, atitude muito criticada pelos núncios da época: o patriarca era” scimmia del Papa” – ou seja, “macaco do Papa” (recorde-se que isso deu origem a algumas coisas notáveis no plano cultural e artístico, como a contratação de Scarlatti para a Capela Patriarcal ou o balcão central de Mafra à semelhança do de São Pedro…). Mas, por outro lado, os núncios não tinham “rasgo para entender a necessária autonomia das igrejas particulares em muitos assuntos”…
Passo o caso da nomeação do bispo do Funchal, cheio de peripécias tragicamente divertidas naquilo que revelam de jogos de poder nos bastidores e do ridículo que ainda hoje se vive em tantos sítios e situações. E passo também a recepção de Paulo VI aos líderes dos movimentos de libertação das colónias. No capítulo sobre o primeiro bispo da Beira, o Autor sublinha que a progressiva abertura de Sebastião Soares de Resende à injustiça que se vivia nas colónias e à ideia da independência das colónias partiu do estudo, da atenção à realidade e da consciência da importância de intervir em questões sociais, sempre com a preocupação de colocar a pessoa no centro – ideia que se repete no último capítulo, quando se faz a leitura do papel da Igreja no encontro de culturas.
No texto sobre D. António Ferreira Gomes (de quem se assinalam por estes dias 50 anos do seu regresso do exílio forçado), cita-se a resposta do então bispo do Porto à crítica que lhe tinha sido feita por ter aparecido numa cerimónia pública junto de dois generais, um deles o Presidente da República, Costa Gomes, e na qual D. António defende que o Reino de Deus deve ser visto como “uma utopia” a concretizar através da presença dos cristãos nas estruturas sociais e políticas. (p. 206).
É nesta perspectiva do reino de Deus como utopia que deve ser “actuada”, concretizada, que este livro se coloca. No sentido de uma intervenção política que entende que um cristão é, ao mesmo tempo, cidadão da polis, da coisa pública; e que, enquanto tal, é/deve ser cidadão de corpo inteiro, participante de associações, sindicatos ou partidos, bom profissional, defensor dos direitos humanos, da justiça social, da liberdade e da vida digna em todas as suas vertentes.
Este livro, que traduz o “processo de fazer da história” referido na introdução e traduzido no título, ajuda a ganhar consciência desse lugar e dessa missão.
(Acerca dos dois últimos livros de Carlos Moreira Azevedo, pode ouvir-se esta entrevista na TSF)
Moinho da Memória – História, religião e política
Autor: Carlos A. Moreira Azevedo; Edição: Paulus
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