quinta-feira, 3 de maio de 2018
Babel, ou a narrativa de uma loucura totalitária,
ilustração de Serge Bloch (texto de Frédéric Boyer),
em Bible - Les récits fondateurs (ed. Bayard)
Na passada segunda-feira, decorreu em Lisboa uma reunião da Associação Bíblica Portuguesa (ABP) que, entre outras coisas, fez o ponto de situação da nova tradução da Bíblia, que está a ser preparada a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa. Esta tradução terá a colaboração de biblistas portugueses e lusófonos, como se descreve nesta notícia.
Em entrevista a Ângela Roque, na Rádio Renascença, o presidente da ABP, padre Mário Sousa, falou das novas perspectivas sobre esta tradução e as diferenças que se poderão vir a encontrar, em relação a anteriores trabalhos – nomeadamente, à tradução que Frederico Lourenço tem vindo a publicar, em vários volumes, desde 2016 (ed. Quetzal). A entrevista pode ser lida aqui.
A propósito precisamente da tradução de Frederico Lourenço, publiquei no número do Inverno 2017 da revista Ler dois textos que a seguir se reproduzem.
AS CHAVES DE LOURENÇO PARA ABRIR A BÍBLIA
Frederico Lourenço anda às voltas com a Bíblia e assim continuará por mais dois anos. Ganha o texto bíblico, mas também os leitores: de uma vez só, ficam com uma nova tradução da Bíblia, e um precioso conjunto de chaves de leitura sobre o contexto histórico, autores, processos de composição do texto, linguística ou personagens bíblicas.
Uma das características que se destaca do trabalho de Frederico Lourenço com a tradução da Bíblia – cujo terceiro volume, contendo os livros proféticos do Antigo Testamento, foi publicado em Outubro passado – é a do corpusjá constituído pelas diferentes introduções (e pelas notas, que complementam muita da informação). Além da tradução propriamente dita, Frederico Lourenço acaba por realizar um segundo trabalho, de grande qualidade, com as introduções e as notas que escreve e constituem já uma importante porta de entrada na Bíblia e nos seus livros.
Quem queira ter o mínimo de informação sobre traduções do texto bíblico, estado dos debates e os diferentes argumentos na exegese histórica e contemporânea, autores e composição dos textos, questões linguísticas atinentes à tradução, história e processo de constituição do cânone bíblico, manuscritos e variantes ou objectivo literário dos textos no seu contexto histórico, entre outros temas, tem aqui um importante guia de leitura. Como também pode ficar a conhecer melhor figuras importantes da narrativa bíblica ou ainda perceber que cada um dos textos da Bíblia muitas vezes não tem um autor único – por exemplo, Mateus, Marcos, Lucas ou João – mas muitos (ou, pelo menos, autores anónimos).
Mesmo no caso de São Paulo, sabe-se hoje que o “apóstolo dos gentios” escreveu apenas sete das 13 cartas que lhe eram atribuídas tradicionalmente. E fica-se a perceber também que, nas sete cartas paulinas autênticas, estão os principais argumentos de defesa da igualdade da mulher em relação ao homem, enquanto nas pseudo-paulinas, escritas por alguns dos seus discípulos, se reflectem de novo as ideias misóginas do tempo. Estas foram rapidamente reassumidas pelas comunidades cristãs primitivas, contrariando o que, para um cada vez maior número de exegetas, tinha sido a atitude de Jesus e do próprio Paulo de Tarso. O apóstolo, como deixa escrito em várias passagens das suas epístolas, colocara mulheres a dirigir comunidades cristãs por ele fundadas, por exemplo.
As introduções da Bíblia de Lourenço – mesmo se por vezes divergimos de algumas das suas afirmações – também nos dão a percepção clara de que nunca houve um cristianismo inteiramente puro, nem mesmo durante a própria vida de Jesus de Nazaré, que não esteve isenta de tensões e conflitos que, aliás, o levaram à morte. Desde o início, o cristianismo teve divisões, tensões, movimentos contraditórios ou divergentes. O facto de haver quatro versões diferentes, em quatro evangelhos (para falar apenas dos canónicos) sobre a vida e a figura de Jesus revela que não se pode falar de um acontecimento quimicamente puro ou neutro. E, logo depois da ressurreição de Jesus, o cristianismo nascente viveu dentro de si muitas experiências diferenciadas, contraditórias por vezes, plurais muitas outras.
Todos estes elementos se tornam evidentes quando se lê não apenas a tradução da Bíblia mas também, e sobretudo, as diferentes introduções – a cada um dos volumes e a cada um dos livros – preparadas pelo tradutor.
Uma marca de autor
“Todo o jardim então se transforma e torna-se inquietante.
De repente aparecem cardos e flores com espinhos.”
– ilustração de Serge Bloch (texto de Frédéric Boyer) no capítulo
O jardim – ou porquê deixar o paraíso, em Bible – Les récits fondateurs (ed. Bayard)
Quer isto dizer que a Bíblia de Lourenço é a edição perfeita? Não, pela simples razão de que as possibilidades de leituras, versões e interpretações do texto bíblico são imensas. O próprio dá a entender isso mesmo, quando assinala diversas vezes, em nota, diferentes possibilidades de tradução de determinada palavra ou frase. Por isso, quando se fala de uma tradução da Bíblia, estamos sempre perante um trabalho de forte marca autoral, documental, histórica, linguística, filológica, teológica ou cultural. Ou de várias destas características em simultâneo.
No caso de Lourenço, essa marca autoral é, claramente, a que mais se destaca. Nesse sentido, como diz o padre Rui Santiago, missionário redentorista (da Congregação do Santíssimo Redentor), que fez a apresentação da tradução de Lourenço no Porto, ficamos, com esta nova tradução, com “uma nova varanda para ver a mesma paisagem”.
Não se pode ignorar que, acolhida genericamente de forma muito positiva, esta nova tradução e edição da Bíblia não deixou de merecer alguns reparos, sobretudo da parte de alguns biblistas. Um dos argumentos principais destacava o facto de ser preparada por um único tradutor. O que não é novo, pois há dezenas de exemplos de trabalhos semelhantes, ao longo da história cristã. Para citar apenas alguns dos mais conhecidos, São Jerónimo traduziu a Vulgata, a edição mais usada, ao longo dos séculos, pelos católicos; São Cirilo e São Metódio, evangelizadores dos eslavos no século IX, traduziram a Bíblia depois de criarem o alfabeto cirílico; Lutero empreendeu também a mesma tarefa para o alemão, concretizando, com a ajuda da imprensa recém-inventada, uma das intuições da Reforma que ele iniciara – a de colocar a Bíblia nas mãos dos crentes e não apenas de uma elite; em Portugal, Ferreira de Almeida (que publicou, no século XVIII, na actual Indonésia, aquela que é hoje a tradução mais utilizada pelos protestantes lusófonos, e sobre o qual há duas pequenas incorrecções factuais que importaria corrigir numa eventual nova edição), bem como os padres Pereira de Figueiredo e Matos Soares fizeram traduções da Bíblia que foram (e são, ainda) muito usadas durante as últimas décadas. Mais recentemente, em França, André Chouraqui editou, em 1987, uma tradução preparada também solitariamente.
O facto de um tradutor fazer este trabalho sozinho não significa, tão pouco, que resultem critérios e opções de uma cabeça só. Sobretudo se falamos de um trabalho sério e exigente como é o caso presente, o tradutor está em permanente confronto e diálogo com opções de outros linguistas, exegetas e tradutores. Nesta tradução concreta, Lourenço dá-nos conta permanentemente de opções (mesmo que divergentes) de exegetas, linguistas, historiadores ou arqueólogos, por exemplo, para sustentar as suas opções.
A Bíblia “mais completa”
A travessia do mar Vermelho, ilustração de Rébecca Dautremer
(texto de Philippe Lechermeier), en Una Biblia, ed. Edelvives
Outra das questões surgidas no pequeno debate público que se sucedeu à publicação do primeiro volume foi em relação à decisão de traduzir a Bíblia dos Setenta, ou Septuaginta. Herculano Alves, franciscano capuchinho e autor de uma biografia de Ferreira de Almeida, alinhava nesse argumento. Num artigo na revista Bíblica, afirmava preferir versões traduzidas a partir dos textos originais (no caso do Antigo Testamento, quase todos em hebraico ou aramaico): “Eu diria que a Igreja procedeu bem ao não traduzir a Bíblia dos Setenta, que é já uma tradução, mas traduzir dos originais hebraicos existentes.”
À opção de Lourenço não será alheio ao facto de estarmos perante alguém que é um tradutor exímio do grego. A Septuagintacorresponde a uma tradução, que se conta ter sido feita em Alexandria no século III a.C., por um conjunto de setenta sábios judeus (daí o nome), destinada à diáspora judaica. Estamos agora, portanto, perante a tradução de uma tradução, que inclui mais alguns curtos textos do que as versões da Bíblia adoptadas por católicos, protestantes e ortodoxos (e, no que à Bíblia hebraica ou Antigo Testamento diz respeito, também por judeus).
Em alguns casos, trata-se apenas de uma diferente organização: os livros de Susanae de Bel e o Dragão, que aparecem autónomos na Septuagintae na tradução de Lourenço, integram o cânone usado pelos católicos; já os terceiro e quarto livros de Macabeus são considerados pseudo-epígrafes na tradição cristã, espécie de livros de piedade popular, comparável a textos como o Talmude (comentários de rabinos judeus à Bíblia) – logo, não são normalmente incluídos nos cânones católicos, protestantes e ortodoxos.
O facto de se insistir na ideia que esta é a edição “mais completa” da Bíblia em português, como tem feito a editora, surge dessa diferente organização e das diferentes composições do cânone bíblico ao longo da história – e não de qualquer “conspiração” das Igrejas cristãs, já que as diferentes versões sempre conviveram pacificamente entre si.
Para se ter noção concreta do que se fala, o Antigo Testamento da Septuaginta(usado, entre outras, pela Igreja Católica Oriental) inclui 53 livros, enquanto o católico se reduz a 46 (que incluem alguns dos livros autónomos dos Setenta, como ficou dito) e o cânone mais usado pelos protestantes se fica pelos 39 livros, já que não incorpora sete livros lidos pelos judeus da diáspora, ao contrário do cânone reconhecido pelo catolicismo. Aliás, convém acrescentar, para baralhar ainda mais, que muitas edições protestantes recentes da Bíblia incluem já também os chamados livros deuterocanónicos, esses sete que eram lidos pelos judeus da diáspora e não eram tradicionalmente lidos pelos protestantes.
Pesados os diferentes argumentos, estamos perante um acontecimento editorial de grandeza cimeira. Pela primeira vez, temos disponível em Portugal uma tradução da Septuaginta. E esse é um facto precioso para quem se interesse pelo texto bíblico. Além de que qualquer edição ou tradução – nomeadamente se resulta de um trabalho sério e de grande qualidade, como este, serve para aproximar novos leitores do texto bíblico. Isto, num país com tão graves lacunas culturais, também no que à Bíblia se refere, é muito importante.
A Bíblia dos LXX, aliás, é diferente das outras versões sobretudo no que ao Antigo Testamento diz respeito. Mas o biblista Tolentino Mendonça, que participou na apresentação da Bíblia de Lourenço em Lisboa, recordou já que os LXX“são a primeira tradução grega do texto bíblico hebraico”. Além de ser a versão mais utilizada pelos autores do Novo Testamento cristão e pelos teólogos cristãos dos primeiros três séculos, esta edição acabaria por ser uma espécie de texto oficial do cristianismo, antes de, mais tarde, esse estatuto ser ocupado pela Vulgatade S. Jerónimo e, na contemporaneidade, pelas traduções feitas a partir do original hebraico. “Para lá do enorme interesse documental, histórico e filológico, este empreendimento editorial permite-nos conhecer um texto que lança luz sobre a construção do pensamento cristão e que é, por exemplo, lido ainda hoje pelos fiéis das Igrejas orientais, que o mantêm como a sua versão corrente”, escreveu Tolentino Mendonça, num texto publicado no jornal digital Observador.
Infinitas possibilidades de leitura
“Nesse tempo, construíam-se cidades enormes no Egipto. Era o tempo dos estaleiros faraónicos.”
Ilustração de Serge Bloch (texto de Frédéric Boyer) no capítulo
Moisés - ou o primeiro a conhecer o Nome de Deus, em Bible – Les récits fondateurs (ed. Bayard)
Outro dos argumentos críticos é o facto de Lourenço insistir na ideia de que estamos perante uma tradução “neutra”, desligada de objectivos confessionais. Trata-se de dar a conhecer o texto bíblico, escreve o tradutor na apresentação geral da obra e da Bíblia grega que lhe está na base (volume I), “de forma não-doutrinária, não-confessional e não-apologética”.
É verdade que a tradução de Lourenço não tem qualquer objectivo doutrinário, confessional ou apologético. Mas também deve admitir-se que, hoje, as mais importantes edições e traduções da Bíblia não têm essa marca. Foram, aliás, muitas dessas traduções – e projectos internacionais como a TOB(Traduction Oecumenique de la Bible), a Bíblia de Jerusalémou a New American Standard Bible(NASB) – que desmontaram anteriores formas de traduzir que, essas sim, se poderiam classificar de doutrinais ou confessionais, no sentido em que davam primazia à justificação de modos de ver tradicionais das estruturas cristãs e não ao sentido do texto. Um exemplo, entre muitos: a referência, nas cartas paulinas, à submissão da mulher em relação ao homem, através do uso do véu – que, afinal, era um sinal de autoridade no seio da comunidade, no tempo do cristianismo primitivo.
No texto citado, Tolentino Mendonça escrevia: “Que judaísmo e cristianismo tomam a Bíblia absolutamente a sério, Frederico Lourenço sabe-o bem, pois para esta sua tradução depende do trabalho de biblistas e exegetas judeus e cristãos que vê-se obrigado a citar a cada passo. É bom não morder a mão que nos dá o pão.”
Também por aquilo que já ficou dito, sobre a possibilidade infinita de leitura do texto bíblico, mesmo dentro do original, não se pode aceitar a ideia de uma tradução quimicamente pura, como diz Rui Santiago. “É mitológica a ideia de uma tradução neutra, porque cada palavra já tem uma hermenêutica.”
O tradutor opta também por traduzir de forma diferente expressões consagradas tradicionalmente. É o de “filho da humanidade” em vez de “filho do homem”, usada nos evangelhos na referência a Jesus. Mesmo se se entende a argumentação utilizada por Frederico Lourenço, fica-se com dúvidas sobre o acerto da decisão. Outra das opções é “erro” em vez de “pecado”. Rui Santiago entende que ela é correcta, não por ser melhor ou pior, mas por “obrigar a olhar o texto de outra maneira” e por constituir uma “tomada de posição”.
Às voltas com Jesus
Capa da edição francesa original de Une Bible - Un Nouveau Testament,
de Rébecca Dautremer (ilustração) e Philippe Lechermeier (texto),
ed. Hachette Livre/Gautier Languereau
A excelência das introduções (nas quais a beleza da escrita de Lourenço não é um pormenor) revela-se também quando o tradutor explica aquilo que para os mais incautos pode aparecer como “contradições” do texto ou ainda quando fala de personagens como Paulo, a mãe de Jesus ou os apóstolos. As discrepâncias e contradições funcionam mesmo, escreve Lourenço, “como garantia de autenticidade”, uma vez que até teria sido mais fácil fazer uma versão concordante da vida de Jesus.
Também sobre Paulo (outra notável reflexão introdutória, a par dos textos sobre os profetas e o profetismo, no terceiro volume, ou sobre o grego dos evangelhos, no primeiro), Lourenço dá muitas chaves de leitura. As referências a temas como a escravatura, a mulher, a homossexualidade ou a democracia devem ser enquadradas no contexto histórico, filosófico e cultural, defende.
Ao escrever as cartas, explica ainda, o apóstolo fê-lo com um sentido de urgência, considerando que se estava na “expectativa iminente da transformação radical, da espiritualização cósmica prestes a ser trazida pela segunda vinda de Cristo”. Havia, por isso, uma “mundividência apocalíptica” em Paulo que pode ajudar a ler muitos dos seus textos.
Só é de estranhar, aqui, que Lourenço não refira o estudo decisivo de Karl Barth sobre a Carta aos Romanos e não destaque suficientemente algumas das mais recentes investigações sobre o modo como Paulo lidou com a presença de mulheres nas comunidades por ele fundadas – chegando ao ponto de colocar algumas delas em posição de liderança, como tão bem mostra Jerome Murphy O’Connor num estudo (Paulo) editado em 2008 em Portugal (ed. Paulinas) ou que nem sequer cite as investigações decisivas de John P. Meier e da sua obra em progresso Um Judeu Marginal. Neste estudo, percebe-se, aliás, como uma interpretação errada de Paulo (para a qual Lutero também contribuiu, ao traduzir a Carta aos Romanos de forma errónea, como Lourenço explica) levou a um debate inquinado no cristianismo, sobre a importância da fé e das obras.
A introdução de Lourenço ao texto da Carta aos Romanos é essencial para se entender a grandeza e os temas condutores desse texto, chegando à conclusão da radical igualdade de todas as pessoas perante Deus – um Deus que, na perspectiva de Paulo, salva toda a gente e não apenas alguns.
É notória a admiração de Lourenço pelo texto bíblico e por alguns dos livros em particular. A Bíblia é “um marco da cultura universal que – pelo seu valor religioso, estético e histórico – urge conhecer”. Os quatro evangelhos são de uma “beleza desarmante”, o evangelho de Lucas “marcou de forma indelével não só o cristianismo mas a espiritualidade e a cultura universais”, os Actos dos Apóstolos são uma obra “superlativamente bem escrita”, com “magníficas qualidades literárias”, mesmo quase “cinematográficas”, Paulo é um “escritor fascinante”. Mas, para Lourenço, tudo isso resulta do deslumbramento por “um homem carismático, cheio de compreensão por todo o tipo de sofrimento humano”; um homem que, “apesar de não ter” cometido crimes, morreu como o pior dos criminosos; que era “portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras simples”. Esse homem, Jesus de Nazaré, o “Ungido” de Deus ou Cristo, para os seus seguidores, afinal “não morreu”. Porque “a verdade é esta: tanto crentes como não-crentes andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos na Terra”.
UMA “INCRÍVEL FONTE DE IMAGENS”
– sobre algumas recentes edições de Bíblias ilustradas
Como tudo começou, não o saberemos nunca. Mas sabemos que um dos impulsos fundamentais que ajudou à construção do texto bíblico foi a deportação dos judeus por Nabucodonosor: no ano 586 antes de Cristo, a conquista de Jerusalém levou à deportação de mais de 10 mil judeus para a Babilónia. “No exílio, eles recordavam-se do Deus único, de uma promessa e das maravilhas de antes. De palavras no céu. De uma estrada no mar. E com estas velhas histórias eles vão escrever a sua esperança”.
É a este argumento que o desenhador Serge Bloch (L’Obs, Time, Washington Post, New York Times, além de dezenas de livros ilustrados) e o escritor e tradutor Frédéric Boyer, especialista em texto bíblico, vão buscar o pretexto para uma obra original: Bible – Les Récits Fondateurs(Bíblia – as narrativas fundadoras, ed. Bayard). Publicada há poucos meses, ela recolhe 35 das principais histórias dos textos proféticos, sapienciais e históricos do Antigo Testamento – do Génesis ao livro de Daniel.
O sabor das histórias e da sua recriação permanente
Se o Novo Testamento é, muitas vezes, um diálogo permanente com a história judaica, o mesmo se verifica com as obras que reescrevem a Bíblia com outras linguagens. Rébecca Dautremer, autora das ilustrações de Une Bible (ed. Hachette, ou Una Biblia na edição espanhola da Edelvives), confessava, a propósito do seu trabalho, publicado em 2014, que as histórias da Bíblia são para ela “uma incrível fonte de imagens”. Também Philippe Lechermeier, autor do texto, recordava o que a avó lhe contava em criança e, quando quis fazer o mesmo com os filhos, deu-se conta de que faltava a criatividade da sua avó: “Não lhes encontrava nem o ritmo nem a poesia nem a fantasia dos relatos da minha avó. Compreendi que (...) a Bíblia que ela me contava era uma versão totalmente pessoal que variava segundo o seu talento, o seu humor e as suas recordações.”
Esta recriação de um texto que, como também dizia Lechermeier, “é uma das chaves da nossa cultura”, é “matéria sensível”, como admitia a ilustradora Rébecca Dautremer. “Guardo um sentimento do sagrado. Pode-se desenhar a Jesus? Pode-se desenhar a Deus? Posso autorizar-me a ilustrar a Criação? A crucifixão? Perguntas intimidantes”, que exigem não “cair na paródia”, mas conservando a inteira “liberdade” da recriação.
A autora consegue essa síntese, como se pode perceber no carácter sensitivo dos desenhos: Eva é uma mulher de duas cores e rosto entre o oriental e o africano; o anjo da anunciação é um homem-pássaro de traço asiático; o berço de Moisés no Nilo é como um ninho nas águas... E, no texto, a mesma poesia surge na recriação de pormenores e contextos feita por Lechermeier.
Igual sensibilidade está presente, mesmo se de forma diferente, no traço de Bloch, autor de Bible – Les Récits Fondateurs(e que pode ser também apreciado em dvd ou em alguns episódios disponíveis num canal Youtube, bastando pesquisar por “Bible récits fondateurs”). Delicado, irónico, despojado, o desenho de Bloch faz-se de contornos, tracejados, pequenas sombras; a sua base é o preto mas a cor surge como sublinhado, destaque, contraste ou afirmação de detalhes. O quadro da história da Torre de Babel, por exemplo, é de uma ironia suprema: a torre que simboliza a vontade dos homens quererem chegar ao céu e tocar Deus é representada por um conjunto de construções e máquinas encimados pela torre Eiffel...
No texto, Boyer alia também uma invulgar intensidade à capacidade de síntese. Os títulos dos diversos capítulos, a que se juntam, no final, pequenos textos de contextualização de cada uma das histórias, continuam essa lógica (por exemplo: Noé ou a última tentação de Deus; Abraão e Sara ou o riso feito carne; O combate de Jacob ou o corpo-a-corpo com Deus; Cenas de amor ou o amor forte como a morte – Cântico dos Cânticos; Job ou o escândalo da inocência; Tobite ou de como a esperança é um romance...).
Marc Chagall, Abraão e os três anjos, ilustração na obra
Antigo Testamento - Génesis, Êxodo e Cântico dos Cânticos
(ed. Relógio d'Água), reproduzida daqui
O texto bíblico tem inspirado centenas de edições ilustradas. Desde Gustave Doré ou Marc Chagall (ambos em edições publicadas nos anos mais recentes em Portugal, este último com um pequeno volume com as pinturas alusivas ao Génesis e Êxodo, na Relógio d’Água), percebe-se que a Bíblia é realmente uma “incrível fonte de imagens”. Mesmo em linguagens mais contemporâneas ou exóticas, como uma vida de Jesus em manga japonesa, publicada há um ano em Espanha (ed. Mensajero). Uma “novela gráfica” que, como diz Conrad Gempf no prefácio, mostra que o autor, Siku, conhece as fontes antigas e tem uma grande sensibilidade – quer no traço quer nos diálogos. A linguagem não é plastificada, mas procura ir até à paixão e intensidade colocadas pelo autor no contexto da época.
Falando apenas de obras de qualidade publicadas nos últimos anos, podem ainda destacar-se outras edições ilustradas do texto bíblico: a Bíblia de Jerusalémcom fotos de grandes fotógrafos (ed. La Martinière), ou o Antigo e Novo Testamento contados através de 100 pinturas cada, com comentários de Régis Debray (Presses de La Renaissance). Em Portugal, é incontornável o trabalho monumental de Ilda David com a tradução de Ferreira d’Almeida (e com incursões complementares com o Cântico dos Cânticos, o Pentateuco e as Cartas de São Paulo, ed. Assírio e Alvim/Círculo de Leitores e Documenta), as ilustrações de Pedro Proença para a edição de textos escolhidos e introduzidos pelo padre Joaquim Carreira das Neves (ed. jornal Expresso), os desenhos de Carla Nazareth para as histórias escolhidas por Alice Vieira e a edição ilustrada por crianças (Sociedade Bíblica). E ainda outras que, vindas do estrangeiro, estão publicadas em português: as histórias ilustradas por Maria Rius (Paulinas), Lisbeth Zwerger (Âmbar) e Michelle Daufresne (Campo das Letras). Na linha dos volumes de Régis Debray, há ainda uma edição do livro Jesus de Nazaré, de Joseph Ratzinger/Bento XVI, ilustrada por grandes obras da pintura ocidental (ed. Esfera dos Livros).
Num outro âmbito, podem citar-se duas Bíblias para adolescentes e jovens, ambas na Paulus. A mais recente, a YouCat, editada em Julho de 2017, tem um texto de introdução do Papa Francisco, que fala da Bíblia como um “livro extremamente perigoso”, por causa do qual há crentes que são perseguidos ou condenados. Nos dois casos, trata-se de uma selecção de textos bíblicos significativos, comentários, fotos e desenhos, além de textos de contextualização histórica, geográfica e cultural.
Com essa capacidade de se transfigurar como “incrível fonte de imagens”, atravessando os tempos – como mostrou a exposição da Biblioteca Nacional, há ano e meio, com exemplares de Bíblias medievais e pinturas de Ilda David (catálogo ed. Documenta) – a Bíblia continua a evidenciar as razões de ser, como dizia Philippe Lechermeier, “um texto fundamental sobre o qual assenta a nossa civilização” e um “bem comum” que ultrapassa “amplamente o campo religioso”. E que tem um impacto muito “poderoso” sobre “a nossa língua, a nossa psicologia, a nossa estética, a nossa moral”.
Sem comentários:
Enviar um comentário