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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Taumaturgos

Anunciou-se na cidade o impossível. Um cidadão, dotado de poderes extraordinários, degolaria um galo e depois o recomporia. Mas não o faria como animal empalhado, senão como ave capaz de novamente subir numa cerca e soltar os pulmões para acordar a natureza e a vizinhança. O milagreiro devolveria a vida que roubara. E mais: faria isto num teatro, diante dos olhos da plateia. Fico a imaginar o público pagando na bilheteria para assistir o inacreditável. Minutos antes do início do programa, os murmúrios, os olhares, indagativos uns, atoleimados todos. No ápice do primeiro de dois atos, o corte. Sangue a jorrar, o galo a desfalecer, e o pior: a cabeça estava na mão do prefeito, o corpo na mão do delegado. O espanto da plateia, manifesto em prolongados e extáticos ós, apenas premiou uma cena corriqueira de um galináceo degolado.

A excitação atingira o clímax. Os que ali estavam presenciariam algo digno da Terra Santa: a vida devolvida a um ser morto. É certo que o milagre pareceria menor, afinal a morte se dera havia minutos e não quatro dias antes. Acotovelam-se todos, paralisados pela mais irracional credulidade. E então o desenlace: o taumaturgo escapa pelos fundos, levando consigo o valor da bilheteria. Deixou para trás um corpo e uma cabeça, apartados, de um ex-galo. E um público muito desapontado com o escroque e mais ainda consigo mesmo. Como podem ter acreditado numa bobagem destas? É bem provável que a grande maioria já saiba que a história acima, tudo indica, é verídica e se passou na serra gaúcha, em Flores da Cunha, que oficialmente – passada a vergonha coletiva,- intitula-se Terra do Galo. Nada como uma década depois da outra para transformar um apagão do espírito crítico em um mote turístico.

Dias antes dos festejos de fim de ano não consegui evitar um programa que nada aprecio. Não deu mesmo para escapar do supermercado. Já entro de costas, o que faz com que esqueça metade do que devo comprar se não tiver uma lista à mão. O mais engraçado a este respeito é a recomendação da minha esposa: para lembrar do que deveria comprar, devo percorrer todas as gôndolas ... Neste momento reconheço a sabedoria do ditado: se conselho fosse bom ...

Enquanto aguardava na fila do caixa observei um painel eletrônico do estabelecimento que convidava os clientes a salvar o planeta. A mensagem era algo na linha do “não use saquinhos plásticos, traga a sua sacola”. Quem não quer salvar o planeta? De minha parte, digo sim, mas não imaginava que a tarefa fosse tão simples! Bem, eu não trouxera nenhuma sacola, como em geral nunca uso algo similar. Deveria portanto me sentir um devastador, alvo de dedos em riste, acusadores. Teria quem sabe até me deprimido se não verificasse que no caixa existiam sacolas reforçadas à venda. Plásticas. Também teria me sentido culpado se não tivesse no carrinho refrigerantes com embalagens plásticas, latas de cerveja, sucos com embalagens sofisticadas e a certeza de que os invólucros e o transporte custam mais que o produto em si.

Toda a conversa mole que se ouve hoje em dia a respeito de sustentabilidade, com o perdão da coincidência, não se sustenta. Os grandes grupos internacionais estenderam seus tentáculos e não param de devorar economias nacionais.

Planejam ganhos financeiros e crescimento de seus negócios, demandando muita petroquímica, logística e engarrafamentos. Gostaria que alguém explicasse como pode ser sustentável o desperdício que se vê mundo afora. Há quem acredite na reciclagem. Na Alemanha, para citar exemplo contundente, suposto bom exemplo, surgem novas montanhas no relevo. São montanhas de lixo. No Brasil, reciclagem é sinônimo de horda de miseráveis e seus carros de tração humana, catando papel, lata, vidro e outras coisas mais.

O poeta e político português, Guerra Junqueiro, escreveu em 1904 um texto a respeito do que muito mais tarde se denominaria globalização:  “A revolução franceza, o telegrapho e o vapor desagrilhoaram os povos e unificaram o globo. Os homens que estavam, como feras d’uma menagerie, separados em jaulas — uma de oiro e de velludo, outras de ferro e de excrementos — despedaçaram as grades que os prendiam e saltaram livres e eguaes para o mesmo circo, rugindo coleras, dardejando appetites. De sorte que a terra tomou de subito o aspecto d’uma arena infinita em que o genero humano se lacera e devora implacavelmente, n’um antropophagismo economico, n’uma hecatombe utilitaria commercial".

Não me parece que Junqueiro possa ser chamado de pessimista. Dez anos depois eclodiria a primeira guerra mundial, quando baionetas abriram a picada para um novo ordenamento, pouco duradouro. Assim, quando escuto a tal palavra sustentabilidade fico a me perguntar se não estamos, todos, assistindo, em nível planetário, a promessa de ressurreição de galo decapitado.

J. B. Teixeira



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