Anunciou-se na cidade o impossível. Um cidadão, dotado de poderes
extraordinários, degolaria um galo e depois o recomporia. Mas não o faria como
animal empalhado, senão como ave capaz de novamente subir numa cerca e soltar
os pulmões para acordar a natureza e a vizinhança. O milagreiro devolveria a
vida que roubara. E mais: faria isto num teatro, diante dos olhos da plateia.
Fico a imaginar o público pagando na bilheteria para assistir o inacreditável.
Minutos antes do início do programa, os murmúrios, os olhares, indagativos uns,
atoleimados todos. No ápice do primeiro de dois atos, o corte. Sangue a jorrar,
o galo a desfalecer, e o pior: a cabeça estava na mão do prefeito, o corpo na
mão do delegado. O espanto da plateia, manifesto em prolongados e extáticos ós,
apenas premiou uma cena corriqueira de um galináceo degolado.
A excitação atingira o clímax. Os que ali estavam presenciariam algo
digno da Terra Santa: a vida devolvida a um ser morto. É certo que o milagre
pareceria menor, afinal a morte se dera havia minutos e não quatro dias antes. Acotovelam-se
todos, paralisados pela mais irracional credulidade. E então o desenlace: o
taumaturgo escapa pelos fundos, levando consigo o valor da bilheteria. Deixou para
trás um corpo e uma cabeça, apartados, de um ex-galo. E um público muito desapontado
com o escroque e mais ainda consigo mesmo. Como podem ter acreditado numa
bobagem destas? É bem provável que a grande maioria já saiba que a história
acima, tudo indica, é verídica e se passou na serra gaúcha, em Flores da Cunha,
que oficialmente – passada a vergonha coletiva,- intitula-se Terra do Galo.
Nada como uma década depois da outra para transformar um apagão do espírito
crítico em um mote turístico.
Dias antes dos festejos de fim de ano não consegui evitar um
programa que nada aprecio. Não deu mesmo para escapar do supermercado. Já entro
de costas, o que faz com que esqueça metade do que devo comprar se não tiver
uma lista à mão. O mais engraçado a este respeito é a recomendação da minha
esposa: para lembrar do que deveria comprar, devo percorrer todas as gôndolas
... Neste momento reconheço a sabedoria do ditado: se conselho fosse bom ...
Enquanto aguardava na fila do caixa observei um painel eletrônico do
estabelecimento que convidava os clientes a salvar o planeta. A mensagem era
algo na linha do “não use saquinhos
plásticos, traga a sua sacola”. Quem não quer salvar o planeta? De minha
parte, digo sim, mas não imaginava que a tarefa fosse tão simples! Bem, eu não
trouxera nenhuma sacola, como em geral nunca uso algo similar. Deveria portanto
me sentir um devastador, alvo de dedos em riste, acusadores. Teria quem sabe
até me deprimido se não verificasse que no caixa existiam sacolas reforçadas à
venda. Plásticas. Também teria me sentido culpado se não tivesse no carrinho refrigerantes
com embalagens plásticas, latas de cerveja, sucos com embalagens sofisticadas e
a certeza de que os invólucros e o transporte custam mais que o produto em si.
Toda a conversa mole que se ouve hoje em dia a respeito de
sustentabilidade, com o perdão da coincidência, não se sustenta. Os grandes
grupos internacionais estenderam seus tentáculos e não param de devorar
economias nacionais.
Planejam ganhos financeiros e crescimento de seus negócios,
demandando muita petroquímica, logística e engarrafamentos. Gostaria que alguém
explicasse como pode ser sustentável o desperdício que se vê mundo afora. Há
quem acredite na reciclagem. Na Alemanha, para citar exemplo contundente,
suposto bom exemplo, surgem novas montanhas no relevo. São montanhas de lixo.
No Brasil, reciclagem é sinônimo de horda de miseráveis e seus carros de tração
humana, catando papel, lata, vidro e outras coisas mais.
O poeta e
político português, Guerra Junqueiro, escreveu em 1904 um texto a respeito do
que muito mais tarde se denominaria globalização: “A revolução franceza, o telegrapho e o
vapor desagrilhoaram os povos e unificaram o globo. Os homens que estavam, como
feras d’uma menagerie, separados em jaulas — uma de oiro e de velludo, outras de
ferro e de excrementos — despedaçaram as grades que os prendiam e saltaram
livres e eguaes para o mesmo circo, rugindo coleras, dardejando appetites. De
sorte que a terra tomou de subito o aspecto d’uma arena infinita em que o genero
humano se lacera e devora implacavelmente, n’um antropophagismo economico,
n’uma hecatombe utilitaria commercial".
Não me parece que Junqueiro possa ser
chamado de pessimista. Dez anos depois eclodiria a primeira guerra mundial,
quando baionetas abriram a picada para um novo ordenamento, pouco duradouro.
Assim, quando escuto a tal palavra sustentabilidade fico a me perguntar se não
estamos, todos, assistindo, em nível planetário, a promessa de ressurreição de
galo decapitado.
J. B. Teixeira |
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