terça-feira, 15 de maio de 2018
Livro/Exposição
Afirmação sem novidade: a Bíblia é uma fonte inesgotável de inspiração para pintores, escultores, artesãos, arquitectos... A história da arte ocidental seria outra, caso não existisse o texto bíblico. Hoje, um dos âmbitos em que essa inspiração mais se tem concretizado é no da ilustração. Num texto aqui publicado há dias, Rébecca Dautremer, autora das ilustrações de Une Bible (ed. Hachette, ou Una Biblia na edição espanhola da Edelvives), diz que as histórias da Bíblia são “uma incrível fonte de imagens”.
Cheio de histórias que traduzem muitas experiências humanas – de amor e ódio, de superação e transfiguração humana, de guerra e paz, de apelo à mais profunda humanidade –, o texto bíblico começa, em muitos casos, por ser “lido” através de pequenos episódios, ilustrados com múltiplas linguagens gráficas. Há múltiplos exemplos que vão desde as formas mais convencionais às que, apelando ao sentido do simbólico, acabam por assumir, também no desenho, aquilo que tantas vezes é o sentido do que está presente no texto.
Histórias da Bíblia– Antigo Testamento, de J. Alberto de Oliveira (texto) e Evelina Oliveira (ilustração) (ed. Letras & Coisas) é mais um feliz exemplo da utilização da Bíblia numa bela síntese de texto e imagem. A obra centra-se em muitos personagens fulcrais na(s) história(s) bíblica(s) do Antigo Testamento: Eva e Adão, Noé, Sara, Abraão, Rebeca e Isaac, José, Moisés, Rute, Samuel, David, Elias, Job, Daniel e Susana, entre muitos outros e outras. Essa dimensão dá-nos, desde logo, um conjunto de retratos (em imagem e texto) que, além de se constituir como galeria de algumas das personagens fundamentais da história bíblica judaica, mostra que a Bíblia é, também, um texto de pessoas concretas. Bastaria folhear o livro e a sua sucessão de “retratos” ilustrados para ter essa percepção.
Neste caso concreto, estamos perante uma ilustração que, apesar da importância que dá ao “retrato”, convoca profundamente a dimensão simbólica do texto bíblico. Ou seja, não se fica pelo carácter meramente ilustrativo do desenho, antes se assume como linguagem e texto complementares. Isso é evidente em muitas das ilustrações, desde as do primeiro capítulo (“Ao princípio”) às das páginas finais (por exemplo, com a história de Daniel e os leões, ou com Tobias a abrir as goelas do peixe para lhe retirar o fel que, sem o saber ainda, curaria o seu pai).
Rébecca Dautremer perguntava, a propósito do seu trabalho: “Guardo um sentimento do sagrado. Pode-se desenhar a Jesus? Pode-se desenhar a Deus? Posso autorizar-me a ilustrar a Criação? A crucifixão? Perguntas intimidantes”, que exigem não “cair na paródia”, mas conservando a inteira “liberdade” da recriação. É essa liberdade que Evelina Oliveira tão bem consegue, através do seu traço e das cores utilizadas.
Um dos impulsos importantes para fixar em texto as histórias bíblicas foi o exílio dos judeus na Babilónia e a necessidade de contar a história do que ali tinha levado. “No exílio, eles recordavam-se do Deus único, de uma promessa e das maravilhas de antes. De palavras no céu. De uma estrada no mar. E com estas velhas histórias eles vão escrever a sua esperança”, diz Serge Bloch (autor das ilustrações de Bible – Les Récits Fondateurs, também citada na ligação já referida antes.
O autor do texto de Une Bible, Philippe Lechermeier, recordava a sua incapacidade de ter com os filhos a mesma criatividade que a avó tivera com ele, pois não encontrava, nas histórias bíblicas, “nem o ritmo nem a poesia nem a fantasia dos relatos” da sua avó.
Histórias da Bíblia não opta por uma versão depurada ou criativa como as de Une Bible ou Bible – Les Récits Fondateurs, antes, como assume, se procura manter próximo do texto original, embora recriando e sintetizando a história, numa versão mais narrativa e, mesmo, dando-lhe uma carga mais poética (como no episódio da criação, quando escreve: “Ao sétimo dia, Deus descansou, dando a bênção da santidade a esse dia e a toda a obra da sua palavra.”). O trabalho é bem conseguido, mesmo se, por vezes, há pequenas expressões nas quais se tropeça e que poderiam, ter sido mais buriladas (alguns exemplos: “Isto é osso dos meus ossos e carne da minha carne”; “A mulher que produziste para minha companheira...”; “toma Isaac e vai às terras da Visão...” em vez de Moriá; “Meu filho, Deus remediará”; “Fugindo de Faraó...” – como nome próprio em vez do cargo; ou ainda “monte Oreb” em vez de Horeb ou Horebe).
Estes pormenores, no entanto, não retiram à obra o grande valor e beleza que ela tem. Em altura de festas de primeira comunhão, este é um excelente presente para levar os mais novos a aproximar-se do texto bíblico.
(Uma exposição com dez ilustrações do Antigo Testamento, das publicadas no livro, e outras dez do Novo Testamento, cuja edição sairá em breve, pode ser vista no Museu de Arte Sacra e Etnologia, em Fátima, até domingo, 20 de Maio)
Histórias da Bíblia – Antigo Testamento
J. Alberto de Oliveira (texto); Evelina Oliveira (ilustrações)
Ed. Letras & Coisas, 228 páginas
Legendas das ilustrações, de cima para baixo:
Os hóspedes de Abraão; O nascimento de Moisés; A viúva de Sarepta; e Daniel na cova dos leões.
Legendas das ilustrações, de cima para baixo:
Os hóspedes de Abraão; O nascimento de Moisés; A viúva de Sarepta; e Daniel na cova dos leões.
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