O
trailer do filme mostra um robô com reações tipicamente humanas. Um amontoado
de latas, esguio, que tem sentimento. Um mote curioso num mundo em que estamos
cada vez mais cercados por tecnologia e os humanos agem cada vez mais como
robôs. Humanos que mal saltam da cama e já pensam em como ganhar dinheiro. “Essa coisa maldita que tanta falta me faz”,
como escreveu Dostoievski a uma sobrinha. O famoso escritor russo conhecia de
perto os apertos financeiros. Sempre endividado, usava o dinheiro que os
editores lhe antecipavam em troca dos direitos da edição de um livro que ainda sequer
escrevera. Escravo que era da jogatina, para piorar em muito sua situação, por
várias vezes perderia tudo nos panos verdes dos cassinos. Gênio literário, tinha
a cabeça na eternidade e o pé fincado no tempo.
No
mundo animal o dinheiro não conta, o que ajuda a explicar por que um cão magro
e sarnento é ainda capaz de sacudir o rabo, sorrindo. Quantos cachorros que
perambulam pelas grandes cidades não têm um destino que lembra a saga de Jó?
Abandonados ou seguindo moradores de rua, a quem empenham fidelidade, mostram
ao vaivém - que neles não pousa a atenção,- que não se precisa de muito para
viver. São seres mais dignos da eternidade que muitos por aí.
Tenho
cumprido uma rotina diferente nos últimos dias. Uma de nossas cachorras está
próxima de trazer ao mundo seus descendentes. É mãe de primeira viagem. Na
tarde de hoje, quente, cavou um buraco, revelando que o parto não tarda. Me
disse um criador que as cachorras fazem isto para administrar os incômodos
pré-natais ou para quem sabe ajudar no posicionamento dos filhotes e
possivelmente para garantir um local adequado para eles.
Instantes
atrás passei a lanterna no canil, que esvaziamos para dar a ela a segurança de
que necessita. Normalmente mais agitada, manteve-se quieta numa das celas.
Apenas descobri onde estava pelos olhos que brilharam no breu. Fui até ela, a
acarinhei e lhe disse que tudo correrá bem. Já não pula, não corre. Está
arfante e parece entender muito bem o que acontecerá. Quem lhe contou isto?
Quem a ensinou a cavar, como todas de sua raça fazem? Decerto que tem as patas
no tempo, mas escuta instruções atávicas e atemporais da eternidade.
Todos
conhecem a história de Pinóquio, que acaba feliz depois de toda a imprudência
do boneco de madeira, que passa pelas mãos de Stromboli e de outros facínoras.
Gepeto acaba com sua solidão e Pinóquio vira um menino de verdade. Bem que a
história poderia valer para as crianças abandonadas, que a vida maltrata pela
indiferença dos homens e coloca mais cedo ou mais tarde diante do dilema de ser
alguém ou perder-se. A perfeição é ideal inatingível, o amor não.
Há
na mitologia grega uma lenda pouco explorada, conhecida como o Mito de
Pigmalião, que era escultor e rei de Chipre. Esculpiu a estátua de uma mulher
que imaginou ideal e por ela se apaixonou. A lenda menciona que Pigmalião
decidira viver em celibato porque as mulheres da ilha eram libertinas e Chipre
adquirira a fama de ilha de cortesãs. Mal comparando, era um Gepeto do amor. Se
Gepeto recebeu a graça de uma fada, Pigmalião contou com a compaixão de
Afrodite, que transformou a estátua da mulher perfeita em uma mulher de
verdade. O sonhador Pigmalião rejeitou seu tempo e apelou para os deuses, que o
escutaram no Olimpo.
Na
vida sonhamos com muita coisa. Sonhamos em constituir uma família e dar a ela o
essencial. Mas o que é o essencial? A baixa taxa de crescimento demográfico nos
países mais ricos parece ser parte da resposta, porque o essencial eleito,
ainda que difuso, é cada vez mais amplo e sofisticado, exigindo incontáveis renúncias
à vida simples. E aos filhos, que atrapalham.
Enquanto
faço hora para minha última vigília noturna pelo canil, releio o que escreveu
Georges Gusdorf sobre o que sucederia à humanidade às portas do Renascimento: “à ordem estacionária vai suceder uma ordem
dinâmica, a humanidade que vivia, se não na eternidade, pelo menos para a
eternidade e em função da eternidade, vai descobrir o tempo. Doravante a
atenção cada vez mais se fixa no presente”. Que frase esta: vai descobrir o
tempo! E com ele o relógio, e com este a correria e com ela as necessidades e
com estas a falta de tempo. Os animais envelhecem mas parecem enfrentar o tempo
sem pressa. Será que sabem que na eternidade não há tempo?
J. B. Teixeira |
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