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segunda-feira, 7 de maio de 2018

Coerente e credível

«A defesa do inocente nascituro (…) deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. (…) Muitas vezes ouve-se dizer que, face ao relativismo e aos limites do mundo atual, seria um tema marginal, por exemplo, a situação dos migrantes. Alguns católicos afirmam que é um tema secundário relativamente aos temas «sérios» da bioética. Que fale assim um político preocupado com os seus sucessos, talvez se possa chegar a compreender; mas não um cristão, cuja única atitude condigna é colocar-se na pele do irmão que arrisca a vida para dar um futuro aos seus filhos. Poderemos nós reconhecer que é precisamente isto o que nos exige Jesus quando diz que a Ele mesmo recebemos em cada forasteiro (cf. Mt 25, 35)? (…)»

Estas palavras da recente exortação apostólica do Papa Francisco Gaudete et Exsultate suscitaram reações negativas da parte de alguns ativistas “pró-vida” norte-americanos, que desde há muito lutam contra o aborto, e as interpretaram como crítica à sua ação Salientaram esses militantes, invocando o magistério dos Papas São João Paulo II e Bento XVI, a primazia do direito à vida sobre quaisquer outros direitos, incluindo os direitos sociais (de que aquele é condição e pressuposto), a extrema vulnerabilidade da vítima do aborto (sem paralelo com outras vítimas), o número avassalador de abortos praticados em todo o mundo (também sem paralelo) e o facto de o aborto, em quase todos os países, ser praticado com o apoio ativo do Estado, como se fosse um direito (o que não se verifica com outras violações de direitos humanos). Tudo isto para salientar que não podem colocar-se no mesmo plano as questões que o Papa Francisco parece colocar no mesmo plano.

Por outro lado, salientaram essas pessoas que no âmbito das opções de política económica e social a doutrina social da Igreja admite um pluralismo de formas de concretização (segundo juízos prudenciais) dos princípios que enuncia de forma genérica. Com base nestas considerações, muitos desses militantes “pró-vida” norte-americanos quase sempre aceitam a agenda política do Partido Republicano, que, em matérias de política social e económica outros considerarão em claro contraste com a doutrina social da Igreja. Se é certo que desta doutrina não decorrem opções únicas de política social e económica, daí não pode resultar a irrelevância dessas opções, ela não pode justificar «tudo e o seu contrário» e aponta claramente para a subordinação dos mecanismos do mercado ao primado da pessoa e ao bem comum. 

O magistério do Papa Francisco não diverge, neste aspeto, do dos Papas que o antecederam, os quais também sempre ligaram a ética da vida à ética social e nunca reduziram as exigências da doutrina social da Igreja a uma ou duas questões (“single issues”), por muito importantes que estas sejam. Se as palavras acima citadas podem ser lidas como crítica a quem faz do combate contra o aborto uma “single issue”, também denunciam quem esquece esse combate, ou até o contraria (como fazem muitos dos políticos católicos do Partido Democrático norte-americano).

A doutrina social da Igreja é um todo harmónico e coerente e isso devem testemunhar os cidadãos e os políticos que nela querem inspirar a sua acção. Muitas vezes, estes terão que marcar a diferença nos vários sectores do espectro político em que se situem. Mas só essa coerência tornará credíveis essa doutrina e essa ação.

Pedro Vaz Patto




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