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quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Querida afilhada

Isabel não sabia para que lado se virar. Tomara que o marido chegasse! Uma semana fora de casa  já era muito... Era sempre assim, quando ele se ausentava em trabalho, mas desde que a mãe de Isabel adoecera ainda era pior.


A sua carga era pesada! Levantara-se bem cedo para ultimar as lancheiras dos almoços e levar os filhos de carro à escola. Depois entrara na sua Escola Secundária e não fora um dia fácil... pelas três e meia, saíra das aulas a correr, fora buscar os dois filhos mais pequenos à escolinha do bairro, correra a casa para os deixar entregues à velha empregada (Abençoada! Tantos anos a aturar aquela família... sentiam-na como membro da família...), e pedira à filha mais velha de 14 anos, que já chegara do liceu, para ajudar a tratar dos manos... em seguida passara pela farmácia a comprar uns remédios  e fora buscar a mãe e a cuidadora, trazendo-a sentada numa cadeira no elevador e passando-a depois para a cadeira de rodas ; por fim, lá estavam as três “arrumadinhas” dentro do carro (uma logística nada fácil, por sinal...) e ala, que se faz tarde! Tinham de chegar pontualmente à clinica de reabilitação para o tratamento, às cinco e meia, caso contrário a mãe poderia perder a  vez... como já acontecera...era sempre aquela correria, três vezes por semana, de há seis meses a esta parte, mas quando o marido estava, sabia que podia contar com ele, mesmo que chegasse mais tarde a casa...agora porém, ele estava fora, em viagem de trabalho e Isabel sentia-se mais desamparada!


Naquela tarde as coisas não estavam nada fáceis...o trânsito parecia caótico, e desde que chegara ao carro, a mãe não cessava de lhe perguntar:- Então é hoje que vamos ao hotel  visitar a minha afilhada Lurdinhas?


Pacientemente, a filha respondia: - Não, mãezinha! Hoje não dá... temos agora o seu tratamento e depois faz-se tarde... tenho os miúdos em casa e não podem ficar sozinhos


- Ora, ora, já percebi que não me queres levar... e ela tem-me telefonado todos os dias a pedir para a ir visitar... se eu morro sem a ver, tu ficas cheia de remorsos...


Naquela tarde Isabel estava exausta, começara as aulas bem cedo, mal tivera tempo para almoçar e sentia-se com pouca paciência para discussões com a mãe, que depois do grave AVC sofrido um ano antes, dava agora  sinais de alguma demência... não falava ao telefone com ninguém... as amigas já não lhe telefonavam, parte delas também já tinham morrido, ou estavam igualmente doentes, e esta recente obsessão com a afilhada Lurdinhas era mais um sinal da progressão da doença... então, de repente, à quinta vez em que a mãe insistia em visitar a Lurdinhas, ao pararem num semáforo, voltando-se para trás, Isabel disse à mãe: - Muito bem! Então hoje faltamos ao tratamento e vamos já ao hotel procurar a sua afilhada... combinado?


A cuidadora olhou para Isabel através do espelho retrovisor, um tanto admirada, Isabel piscou-lhe o olho,  mas a mãe ficou radiante e pôs-se a cantarolar a sua música favorita: “Entre a paz que há na terra, quando a noite flutua, brilha a giesta na serra à luz branca da lua...”. Subitamente, parou de cantar, e lembrou-se:

- Ó filha, mas devíamos levar-lhe um presente...

- Está bem, mãe! Não se preocupe! Tenho aí uma caixa de bombons e a mãe dá-lhe... tinha prometido uns chocolates aos meus filhos, se se portassem bem e tivessem os trabalhos de casa feitos e banhos tomados hoje  à nossa chegada,  mas não faz mal... logo arranjo outra...


Chegadas ao Estoril, Isabel parou o carro à porta do hotel e disse à mãe que ia chamar a Lurdinhas. Com os seus botões ia pensando: - E que será feito dela? E se a Lurdinhas ja não viver aqui? E se já não for dona do hotel? E se já tiver morrido? O quê que eu faço? Meu Deus, ajuda-me...


Aproximando-se da recepção, foi atendida por um empregado, que estranhou a pergunta, respondendo: - A Senhora D. Lurdes já aqui não está há vários anos. Estava doente e agora é a filha que toma conta do hotel... mas se puder esperar um pouco, eu vou já chamá-la...


Passados uns minutos, apareceu-lhe uma jovem muito bonita, apresentando-se como Filomena de quem Isabel tinha uma vaga recordação, quando ela era ainda novita... também a jovem se lembrava vagamente de Isabel... há muitos anos que não se viam... mas lembrava-se perfeitamente da mãe de Isabel que vinha frequentemente instalar-se naquele hotel há muitos anos atrás, e Filomena sabia que os pais de Isabel eram padrinhos de casamento de sua mãe...


Isabel e Filomena falaram um pouco sobre a situação das respetivas mães e como era doloroso vê-las envelhecer, adoecer e perder a memória, mas quando a jovem se preparava para ir ao carro cumprimentar a mãe de Isabel, esta de repente teve uma ideia...


- Desculpe, Filomena, você é tão parecida com a sua mãe... importa-se de fazer um pouco de teatro? Não diga que a sua mãe está doente... por favor, faça de conta que é a sua mãe... será a maior felicidade que pode dar hoje à minha mãe... ela está ansiosa por ver a afilhada Lurdinhas... todos os dias me fala na sua mãe e pede insistentemente para a trazer cá... não podemos decepcioná-la... por favor, trate-a por madrinha, sim? Acho que ela não vai notar a diferença...


E assim aconteceu, de facto! Filomena fez mesmo  teatro... e a mãe de Isabel estava feliz... até quis por força sair do carro para abraçar e beijar a sua “afilhada”...


- Lurdinhas querida, minha querida afilhada, que bonita estás... os anos não passam por ti!!! Estás igual ao dia do teu casamento... como é possível? Nem uma ruga, tão elegante, tão bonita... ai, que felicidade voltar a ver-te, Lurdinhas! Olha, temos aqui uns chocolates para ti...


- Ó madrinha, não era preciso... se eu soubesse que vinha cá hoje também tinha uma surpresa ...


Por fim, despediram-se. Filomena abraçou a “madrinha” e a mãe de Isabel abraçou a “afilhada Lurdinhas”, beijando-a repetidamente com carinho, dizendo:

- Estou um pouco adoentada, mas havemos de voltar! Adeus, querida Lurdinhas! Estou tão feliz por te ver... adeus, adeus, querida afilhada!


Isabel sentia-se igualmente radiante por ter conseguido enfim cumprir aquele desejo da mãe!


Há muito tempo que a não via tão feliz!


No regresso a casa, pelo caminho, a mãe de Isabel voltou a cantarolar e agradeceu à filha a felicidade que lhe proporcionara... depois fechou os olhos,  remeteu-se a um profundo silêncio e só voltou a falar ao entrar em casa. Abrindo os olhos, disse então:

- Ó filha, não esqueças os chocolates que a enfermeira me ofereceu hoje no fim do tratamento! Foi mesmo simpática... como é que ela se chama? Lurdinhas, não é?... Tem graça... é o nome daquela minha afilhada… quando é que me levas lá ao hotel? Ela está sempre a telefonar-me... quer-me ver, tem muitas saudades minhas...


Isabel suspirou profundamente, sentiu uma mágoa imensa molhar-lhe os olhos, fez uma festa na cabeça da mãe, abraçou-a, deu-lhe um grande beijo, mas nada respondeu...

 

... Nessa noite, Isabel sentia-se muito desamparada. Dividida entre a doença da mãe, as necessidades dos filhos de cinco e oito anos, a adolescência da filha mais velha, o trabalho, a casa e o marido ausente...  precisava de forças para enfrentar o dia seguinte!  Ainda tinha de preparar as aulas... mais uma noitada...


Antes de deitar os filhos, rezou com eles e ante a sua desilusão por a mãe não ter trazido os chocolates prometidos, contou-lhes o que acontecera. Compraria no dia seguinte, era ponto assente!

- Coitadinha da avó... - comentaram as crianças.

- Mas, ó mãe, isso nunca vai acontecer à mãe, pois não? A mãe vai ser sempre nova... - acrescentou o filho mais novo.

 

Quando a casa ficou finalmente em silêncio, Isabel ouviu o telefone tocar. Era o marido a telefonar da Polónia.

- Volta depressa, meu querido!

- No sábado já aí estarei, se Deus quiser! Mas diz-me, está tudo bem? Algum problema, querida?

- Não, não há problema nenhum! Está tudo bem... mas fazes-nos  muita falta... e eu  preciso de ti!

 


Fátima Fonseca


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