A sua carga era pesada! Levantara-se
bem cedo para ultimar as lancheiras dos almoços e levar os filhos de carro à
escola. Depois entrara na sua Escola Secundária e não fora um dia fácil...
pelas três e meia, saíra das aulas a correr, fora buscar os dois filhos mais
pequenos à escolinha do bairro, correra a casa para os deixar entregues à velha
empregada (Abençoada! Tantos anos a aturar aquela família... sentiam-na como
membro da família...), e pedira à filha mais velha de 14 anos, que já chegara
do liceu, para ajudar a tratar dos manos... em seguida passara pela farmácia a
comprar uns remédios e fora buscar a mãe e a cuidadora, trazendo-a
sentada numa cadeira no elevador e passando-a depois para a cadeira de rodas ;
por fim, lá estavam as três “arrumadinhas” dentro do carro (uma logística nada
fácil, por sinal...) e ala, que se faz tarde! Tinham de chegar pontualmente à
clinica de reabilitação para o tratamento, às cinco e meia, caso contrário a
mãe poderia perder a vez... como já acontecera...era sempre aquela
correria, três vezes por semana, de há seis meses a esta parte, mas quando o
marido estava, sabia que podia contar com ele, mesmo que chegasse mais tarde a
casa...agora porém, ele estava fora, em viagem de trabalho e Isabel sentia-se
mais desamparada!
Naquela tarde as coisas não estavam
nada fáceis...o trânsito parecia caótico, e desde que chegara ao carro, a mãe
não cessava de lhe perguntar:- Então é hoje que vamos ao hotel
visitar a minha afilhada Lurdinhas?
Pacientemente, a filha respondia:
- Não, mãezinha! Hoje não dá... temos agora o seu tratamento e depois faz-se
tarde... tenho os miúdos em casa e não podem ficar sozinhos
- Ora, ora, já percebi que não me
queres levar... e ela tem-me telefonado todos os dias a pedir para a ir
visitar... se eu morro sem a ver, tu ficas cheia de remorsos...
Naquela tarde Isabel estava
exausta, começara as aulas bem cedo, mal tivera tempo para almoçar e sentia-se
com pouca paciência para discussões com a mãe, que depois do grave AVC sofrido
um ano antes, dava agora sinais de alguma demência... não falava ao
telefone com ninguém... as amigas já não lhe telefonavam, parte delas também já
tinham morrido, ou estavam igualmente doentes, e esta recente obsessão com a
afilhada Lurdinhas era mais um sinal da progressão da doença... então, de
repente, à quinta vez em que a mãe insistia em visitar a Lurdinhas, ao pararem
num semáforo, voltando-se para trás, Isabel disse à mãe: - Muito bem! Então
hoje faltamos ao tratamento e vamos já ao hotel procurar a sua
afilhada... combinado?
A cuidadora olhou para Isabel através
do espelho retrovisor, um tanto admirada, Isabel piscou-lhe o olho, mas a
mãe ficou radiante e pôs-se a cantarolar a sua música favorita: “Entre a paz
que há na terra, quando a noite flutua, brilha a giesta na serra à luz branca
da lua...”. Subitamente, parou de cantar, e lembrou-se:
- Ó filha, mas devíamos levar-lhe um
presente...
- Está bem, mãe! Não se preocupe! Tenho aí uma caixa de bombons e a mãe dá-lhe... tinha prometido uns chocolates aos meus filhos, se se portassem bem e tivessem os trabalhos de casa feitos e banhos tomados hoje à nossa chegada, mas não faz mal... logo arranjo outra...
Chegadas ao Estoril, Isabel parou o carro à porta do hotel e disse à mãe que ia chamar a Lurdinhas. Com os seus botões ia pensando: - E que será feito dela? E se a Lurdinhas ja não viver aqui? E se já não for dona do hotel? E se já tiver morrido? O quê que eu faço? Meu Deus, ajuda-me...
Aproximando-se da recepção, foi
atendida por um empregado, que estranhou a pergunta, respondendo: - A Senhora
D. Lurdes já aqui não está há vários anos. Estava doente e agora é a filha que
toma conta do hotel... mas se puder esperar um pouco, eu vou já chamá-la...
Passados uns minutos, apareceu-lhe
uma jovem muito bonita, apresentando-se como Filomena de quem Isabel tinha uma
vaga recordação, quando ela era ainda novita... também a jovem se lembrava
vagamente de Isabel... há muitos anos que não se viam... mas lembrava-se
perfeitamente da mãe de Isabel que vinha frequentemente instalar-se naquele
hotel há muitos anos atrás, e Filomena sabia que os pais de Isabel eram
padrinhos de casamento de sua mãe...
Isabel e Filomena falaram um pouco
sobre a situação das respetivas mães e como era doloroso vê-las envelhecer,
adoecer e perder a memória, mas quando a jovem se preparava para ir ao carro
cumprimentar a mãe de Isabel, esta de repente teve uma ideia...
- Desculpe, Filomena, você é tão parecida com a sua mãe... importa-se de fazer um pouco de teatro? Não diga que a sua mãe está doente... por favor, faça de conta que é a sua mãe... será a maior felicidade que pode dar hoje à minha mãe... ela está ansiosa por ver a afilhada Lurdinhas... todos os dias me fala na sua mãe e pede insistentemente para a trazer cá... não podemos decepcioná-la... por favor, trate-a por madrinha, sim? Acho que ela não vai notar a diferença...
E assim aconteceu, de facto! Filomena
fez mesmo teatro... e a mãe de Isabel estava feliz... até quis por força
sair do carro para abraçar e beijar a sua “afilhada”...
- Lurdinhas querida, minha querida
afilhada, que bonita estás... os anos não passam por ti!!! Estás igual ao dia do
teu casamento... como é possível? Nem uma ruga, tão elegante, tão bonita... ai,
que felicidade voltar a ver-te, Lurdinhas! Olha, temos aqui uns chocolates para
ti...
- Ó madrinha, não era preciso... se eu
soubesse que vinha cá hoje também tinha uma surpresa ...
Por fim, despediram-se. Filomena
abraçou a “madrinha” e a mãe de Isabel abraçou a “afilhada Lurdinhas”,
beijando-a repetidamente com carinho, dizendo:
- Estou um pouco adoentada, mas
havemos de voltar! Adeus, querida Lurdinhas! Estou tão feliz por te
ver... adeus, adeus, querida afilhada!
Isabel sentia-se igualmente radiante
por ter conseguido enfim cumprir aquele desejo da mãe!
Há muito tempo que a não via tão
feliz!
No regresso a casa, pelo
caminho, a mãe de Isabel voltou a cantarolar e agradeceu à filha a felicidade
que lhe proporcionara... depois fechou os olhos, remeteu-se a um profundo
silêncio e só voltou a falar ao entrar em casa. Abrindo os olhos, disse então:
- Ó filha, não esqueças os chocolates
que a enfermeira me ofereceu hoje no fim do tratamento! Foi mesmo
simpática... como é que ela se chama? Lurdinhas, não é?... Tem graça... é o nome
daquela minha afilhada… quando é que me levas lá ao hotel? Ela está sempre a
telefonar-me... quer-me ver, tem muitas saudades minhas...
Isabel suspirou profundamente, sentiu
uma mágoa imensa molhar-lhe os olhos, fez uma festa na cabeça da mãe,
abraçou-a, deu-lhe um grande beijo, mas nada respondeu...
... Nessa noite, Isabel sentia-se muito desamparada. Dividida entre a doença da mãe, as necessidades dos filhos de cinco e oito anos, a adolescência da filha mais velha, o trabalho, a casa e o marido ausente... precisava de forças para enfrentar o dia seguinte! Ainda tinha de preparar as aulas... mais uma noitada...
Antes de deitar os filhos, rezou com
eles e ante a sua desilusão por a mãe não ter trazido os chocolates prometidos,
contou-lhes o que acontecera. Compraria no dia seguinte, era ponto assente!
- Coitadinha da avó... - comentaram as
crianças.
- Mas, ó mãe, isso nunca vai
acontecer à mãe, pois não? A mãe vai ser sempre nova... - acrescentou o filho
mais novo.
Quando a casa ficou finalmente
em silêncio, Isabel ouviu o telefone tocar. Era o marido a telefonar da
Polónia.
- Volta depressa, meu querido!
- No sábado já aí estarei, se Deus
quiser! Mas diz-me, está tudo bem? Algum problema, querida?
- Não, não há problema nenhum! Está
tudo bem... mas fazes-nos muita falta... e eu preciso de ti!
Fátima Fonseca
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