Os membros da plataforma mundial de organizações que pugnam pela abolição da prostituição como violação dos direitos humanos CAP Internatioal – Coalition for the Abolition of Prostitution de que faz parte a associação católica portuguesa “O Ninho”, acolheram com grande júbilo o relatório especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, publicado no passado dia 7 de maio e da autoria da investigadora jordana Reem Ansalem, sobre «a violência sobre mulheres e meninas como causa, forma e consequência da prostituição». Na verdade, as conclusões desse relatório vão exatamente no sentido propugnado por tal plataforma.
Conclui esse relatório que há um nexo intrínseco e incindível entre o fenómeno da prostituição e a violência sobre as mulheres prostituídas e outras formas de violação dos seus direitos humanos. O relatório contém uma impressionante descrição (verdadeiramente incrível e aqui irreproduzível) de práticas e danos sofridos por tais mulheres (ver o capítulo IV- B, 10 a 15). Impressiona onde pode chegar a perversão dos proxenetas e clientes e o aviltamento dessas mulheres. Poderá dizer-se que são situações extremas, não necessariamente presentes em qualquer tipo de prostituição. Mas elas representam o extremo onde se chega quando se parte da aceitação da redução da pessoa a objeto, da sua “coisificação” ou “instrumentalização” que a prostituição necessariamente implica em qualquer circunstância (e é assim porque o corpo e a sexualidade são dimensões intrínsecas da pessoa, não acessórios, que dela podem separar-se). Essas situações são o ápice dessa instrumentalização, mas esta está sempre presente na prostituição. Por isso, já tenho dito e escrito com frequência que não há prostituição benigna, ela é sempre maligna.
O relatório, nessa linha, recusa a frequente distinção entre prostituição forçada e prostituição livre, Afirma a irrelevância do consentimento de todas as vítimas da prostituição (não apenas as de tráfico de pessoas, como é explicitamente afirmado pelas convenções internacionais de combate a esse tráfico), pois tal consentimento é condicionado por abusos de poder e múltiplos fatores de vulnerabilidade, como a pobreza e a doença, conjugados com a ausência ou dificuldade de acesso a reais alternativas. Salienta como na prostituição, o pagamento de um preço serve de cobertura para a prática de atos degradantes que nunca seriam aceites de bom grado, como se esse pagamento legitimasse essa prática. E daí que muitas vítimas caracterizem o ato de prostituição como “paid rape”, uma violação (com todos os traumas que lhe são inerentes) justificada por esse pagamento (ver o capítulo VII E-50). Por tudo isso, o relatório recusa liminarmente o uso do termo “trabalho sexual” para designar a prostituição, como uma forma de branquear ou minimizar a violação da dignidade humana e dos direitos humanos que necessariamente comporta.
São analisadas criticamente as várias formas de regulação da prostituição. A respeito dos vários sistemas de legalização (vigentes em países como a Alemanha, a Áustria, a Suiça, a Bélgica, a Nova Zelândia e o Uruguai e com partidários também em Portugal), que, partindo de uma ideia indiferente e resignada de suposta inevitabilidade da prostituição, pretendem uma redução dos seus danos no plano do controlo da violência e outros abusos, da saúde pública, da segurança social e dos direitos “laborais”, o relatório salienta o fracasso desses sistemas (ver o capítulo VII, 29 a 31). A legalização tem beneficiado sobretudo os proxenetas e não as mulheres prostituídas (na Alemanha, por vários e compreensíveis motivos, em 2022 foram celebrados apenas 50 “contratos de trabalho” num universo que se calcula ser de 250.000 pessoas prostituídas). É ilusório esperar que a pessoa prostituída, numa posição de acentuada vulnerabilidade, apresente queixa contra proxenetas e clientes em caso de abusos. A legalização tem contribuído para o aumento exponencial da procura e do mercado e, por consequência, para o aumento do tráfico de pessoas (de países mais pobres, do leste da Europa e do sul do mundo). Um muito completo estudo de 2013 da revista World Development (41-C), que analisou a situação de 150 países, concluiu que os sistemas de legalização da prostituição contribuem para o aumento da procura, do mercado, do tráfico de pessoas e da violência contra as mulheres prostituídas. O que revela, mais uma vez, que não há prostituição benigna, ela é sempre maligna e não é a legalização que a torna benigna (antes reforça a sua malignidade intrínseca)
Pelo contrário, o relatório sublinha (no capítulo VI 32) o sucesso do modelo abolicionista (também designado por “modelo nórdico”, porque o país pioneiro foi a Suécia, seguido da Noruega e da Islândia, ou “modelo igualitário”, porque abolir a prostituição significa abolir um sistema que perpetua o domínio do homem sobre a mulher). Este sistema parte da consideração de que a prostituição é sempre uma violação dos direitos humanos e, como tal, deve ser abolida. É punido o proxenetismo e também o cliente de prostituição. A mulher prostituída é encarada como vítima e apoiada na busca de alternativas. Da Suécia, o sistema tem-se expandido e vigora hoje em França, ma Irlanda e no Canadá. O sucesso pode medir-se, na Suécia, pela redução da procura, do mercado, do tráfico de pessoas e da violência (não há notícia de casos de homicídio de prostitutas, ao contrário do que se verifica noutros países) e pelo número significativo de mulheres que abandonaram a atividade com apoios à sua reinserção social.
Para surpresa de muitos, pode ler-se no relatório (nos capítulos IV B 15 e VIII 57) que se advoga a abolição da pornografia pelos mesmos motivos por que se advoga a abolição da prostituição: a coisificação da pessoa ocorre num e noutro caso, a exploração da vulnerabilidade ocorre num e noutro caso. Isso fez-me lembrar um representante do governo sueco a quem um dia ouvi dizer enfaticamente que, em nome do feminismo, é chegada a hora de colocar na agenda política a luta contra a pornografia. Considera o relatório que a pornografia deve ser considerada um tratamento cruel e degradante proibido pelas convenções internacionais de defesa dos direitos humanos. No fundo, pode também dizer-se que não há pornografia benigna, ela é sempre maligna.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.
Sem comentários:
Enviar um comentário