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sábado, 31 de agosto de 2024

Metanoia


Leontina Augusta estava zangada com a vida há muito tempo… era uma pessoa azeda, difícil no seu relacionamento e acumulara agravos desde a infância: sempre detestara o nome que os pais lhe tinham dado e que tanto a envergonhara pela vida fora (…’raio de nome… Porquê? ‘Perguntara-se frequentemente quando crescera até perceber que vinha da bisavó de origem eslava…); depois, na adolescência, ficara furiosa pelo facto de os pais não a terem deixado seguir a carreira de bailarina que a apaixonava (…’Nem pensar! isso não é profissão condigna para uma menina com a sua educação! Escolha Direito, um curso a sério, e terá a vida facilitada no nosso escritório de advogados! Honrará o seu apelido de família!…’) e assim acabara por ser toda a vida uma jurista frustrada, apenas para fazer a vontade aos pais e assegurar a continuidade do escritório; por fim, aos quarenta anos, sofrera um grande embate e a maior decepção da sua vida: a perda do seu único e verdadeiro amor, Miguel, um jovem médico dez anos mais novo do que ela, que certo dia, após mais uma intensa discussão e depois de oito anos de vida em comum a deixara, repentinamente, e não mais voltara, nem dera qualquer sinal de vida… (…‘estou farto de ti! Não percebes? És uma mulher muito egoísta, só pensas em ti, na tua beleza, na tua vidinha… não quiseste casar quando eu queria casar contigo, nem dar-me a alegria de ser pai… basta! Estavas à espera de quê? Sim, amei-te e muito, mas acabou-se e vou-me embora hoje mesmo…).

Fora um enorme desgosto, mas Leontina não aprendera a lição… a culpa era sempre dos outros e ela parecia ter o condão de magoar as pessoas mais próximas… não sabia viver com os outros, nem para os outros… e assim ia afastando todos, amigos e pretendentes, do seu convívio!

Agora aos 60 e tal anos, já reformada do escritório que herdara, mas que toda a vida detestara, Leontina, com pouco ou nada que fazer, mas ainda uma mulher bonita e vistosa, aparentando ser mais nova, continuava centrada em si, no seu aspeto exterior… quando saía à rua, ainda sentia o desejo de ser admirada… olhava-se nos vidros das montras e dos carros, caminhava com um passo estudado, e em casa, quando se via ao espelho, não suportava as imperfeições da pele envelhecida, que procurava disfarçar com os melhores cremes e amargurava-se até, cada vez que descobria uma nova ruga, um quilo a mais, ou mais algum sinal de flacidez no pescoço… vestia-se como uma jovem, frequentava o ginásio, a piscina, o cabeleireiro, as melhores lojas de roupa… ia ao cinema, ao teatro, concertos e ballet, restaurantes de luxo, mas andava sempre sozinha!

Vivia apenas com uma velha empregada, a Clotilde, no casarão de família que herdara e com o seu feitio orgulhoso e distante já quase nem sequer se relacionava com a única sobrinha que lhe restava, depois da morte do irmão e da cunhada. Na verdade, incompatibilizara-se com Maria - uma jovem assistente social amorosa e muito trabalhadora que um dia lhe batera à porta e lhe pedira um favor: não tinha casa, acabara o curso, queria muito casar e lembrara-se de pedir à tia para lhe alugar o rés-do-chão daquele casarão, ou apenas uma pequena parte da casa que não usava… mas Leontina recusara de imediato sem uma razão plausível, pelo que a pouca relação existente esfriara e os escassos contatos tinham passado a ser apenas telefónicos…

Leontina estava convencida de que não precisava de ninguém. Com o seu dinheiro poderia sempre comprar tudo o que precisasse… mas os anos iam passando…

Clotilde, a empregada, sensível e com bondosa, conhecera bem os pais de Leontina e por isso, tinha muita pena por ver a ‘sua menina’ sempre sozinha, fechada em si mesma, sem preparar nem saber aceitar a velhice que se aproximava e muitas vezes lhe dizia numa carinhosa censura:

- ‘…mas a menina que é tão inteligente não vê que já não é criança? Por que se afastou de todos, até da sua sobrinha Maria, tão boa pessoa? Um dia vai precisar dela… todos precisamos uns dos outros…’ Porém Leontina não ligava e irritava-se a sério com Clotilde…

Num certo fim de tarde escuro e chuvoso, à saída do ginásio - como sempre, ignorando o jovem sem-abrigo nepalês ali encolhido e sentado no chão à chuva, a pedir esmola silenciosamente - Leontina atravessou a rua a correr, e foi violentamente atropelada por uma moto, cujo condutor fugiu, deixando-a caída no chão, com o rosto a sangrar abundantemente, incapaz de se levantar.

O nepalês viu-a. Não havia vivalma naquele momento, a não ser ele, e de um salto pôs-se em pé e correu para a ajudar, arrastando-a cuidadosamente para o passeio… ‘I’ll get an ambulance!’

Em seguida, foi ao ginásio, por sinais pediu ajuda e em breve estavam várias pessoas à volta de Leontina e uma ambulância a chegar.

Ao ser levada, Leontina ainda abriu a mala e num gesto espontâneo entregou todo o dinheiro que tinha ao jovem nepalês, dizendo:

‘Para ti! Obrigada!’ Ele não queria aceitar, mas Leontina insistiu e num murmúrio, apenas perguntou:

-‘Your name?’

-‘Sunil, madam…’

-‘Obrigada, Sunil…’

Quando voltou a si, muitas horas depois, já no hospital, debaixo de uma luz intensa, teve a sensação de reconhecer o rosto de alguém… batas verdes, um cheiro a desinfetante, mas voltou a adormecer…

No dia seguinte, ainda no recobro, Miguel veio ter com ela. Fez-lhe uma festa na mão e baixinho disse-lhe:

- ‘Não tenhas medo… o pior já passou! Nunca pensei que um dia teria de te operar… mas tudo correu bem! ‘

- ‘Que me aconteceu?’

- ‘Foste atropelada por um rapaz numa moto, mas abandonou-te e fugiu. Foi um rapazito nepalês, um sem-abrigo que te socorreu… salvou-te a vida, podes crer! Mas agora tens de descansar… voltarei mais tarde!’

Passaram-se dias e semanas… Leontina esteve longo tempo fechada entre quatro paredes no hospital. Partilhou o quarto de três camas com outros doentes. Ouviu as suas histórias. Viu gente morrer a seu lado. E aos poucos, alguma coisa a fazia pensar que apesar de tudo, estar viva era afinal um presente… talvez d´Aquele a Quem nunca ligara… Miguel continuava a passar diariamente no quarto para a ver, mas apenas como médico e amigo. Leontina perguntara-lhe um dia, se tinha casado e Miguel respondera afirmativamente e contara-lhe que tinha três filhos pequenos. Depois de um breve silêncio, Leontina estendeu-lhe a mão e olhando-o com uma sombra de tristeza, sorrira e comentara apenas: - ‘Ainda bem que és feliz! Fico contente por ti… merecias!’

Clotilde e a sobrinha Maria, visitavam-na com frequência e procuravam animá-la. Os estragos tinham sido muitos… quando se vira ao espelho pela primeira vez, apesar de avisada com todo o cuidado por Miguel, de que sofrera vários traumatismos graves na cara e na cabeça, teve um choque tremendo. Não se reconhecia… com tantas cicatrizes naquele rosto agora deformado… e isso era bem pior do que ter de usar canadianas por causa dos estragos sofridos na coluna…

Entretanto Leontina mudou para outro departamento de reabilitação, num edifício próximo do hospital. Aí conheceu uma jovem em cadeira de rodas, que dava nas vistas pela sua alegria. Sempre com uma flor na cabeça, a cantarolar, andava na sua cadeira por todas as enfermarias e rapidamente travava conhecimento e fazia amizade com os outros doentes. Tinha sempre uma palavra de especial carinho para com os que estavam mais tristes e desanimados. Leontina admirava-a cada vez mais! Ela emprestava-lhe livros de vidas inspiradoras e Leontina ia absorvendo tudo como uma esponja. Um dia, a sua nova amiga saiu em passeio com a família e no regresso contou-lhe que tinha ido a Fátima e visitara o Centro João Paulo II, para deficientes profundos. Vinha muito impressionada com tudo o que ali vira. E numa parede encontrara um pequeno texto que queria partilhar com Leontina. Tinha sido deixado por um jovem voluntário basco de Bidasoa, e tinham resolvido emoldurá-lo e pendurá-lo para todos o poderem ler. Mostrou-lhe a foto que tirara antes de vir embora: Leontina pediu-lhe a foto, guardou-a e todos os dias a olhava! Era uma nova inspiração…

Entretanto, em conversa com Maria e Clotilde, Leontina começou a falar-lhes no regresso a casa e em fazer obras no casarão por forma a transformar os espaços e poder fazer um apartamento para Maria e seu marido (‘se eles quisessem…’) assim como transformar o rés-do-chão numa casa de acolhimento para jovens sem-abrigo e abrir uma sala de aulas para estrangeiros. Maria e Clotilde ficaram mudas de espanto… que grande transformação! Claro que tudo isto só poderia ser concretizado se Maria, como assistente social, pudesse ajudar e Clotilde também… e elas de imediato manifestaram o seu entusiasmo e adesão…

E os planos de Leontina começaram a sair do papel e a tomar forma…pouco tempo depois começavam os trâmites legais para a criação de uma associação e as obras também!

Leontina já não era a mesma pessoa…e mostrava-se decidida a mudar a sua vida e a vida de outros!

Durante esse período, acabado o tempo de internamento, Maria levou Leontina e Clotilde para sua casa.

Entretanto, Leontina voltara a passar no local do atropelamento para ver de novo o sem-abrigo nepalês. Ele ali continuava, sentado no chão, sempre à espera de alguma ajuda. Leontina quis falar com ele e através da janela do carro chamou-o pelo nome: - ‘Sunil!’

Ele reconheceu-a de imediato. Levantou-se, e Leontina, sorrindo, estendeu-lhe a mão através da janela.

- ‘Sunil, you saved my life! obrigada!’

Sunil sorriu também. Sim, de facto ele salvara-lhe a vida… e Leontina tinha planos para lhe agradecer o seu gesto. Deixou-lhe algum dinheiro, explicou-lhe que lhe ia arranjar alojamento e trabalho numa nova associação e prometeu voltar em breve.

Ao registar o nome da associação com o nome de ‘Metanoia’, os funcionários, curiosos, quiseram saber que nome era aquele… com um grande sorriso, Leontina explicou-lhes que se tratava de uma palavra grega e significava ‘transformação, mudança, conversão ‘…os funcionários entreolharam-se admirados… mal sabiam eles a história de Leontina!

Fátima Fonseca




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