Três anos depois, Amnistia acusa
“Três anos depois, a ausência absoluta de medidas concretas para fazer face à catástrofe dos direitos humanos no Afeganistão é uma fonte de vergonha para o mundo”, afirmou Samira Hamidi, responsável pela campanha regional da Amnistia Internacional (AI), para o Sul da Ásia, a propósito da passagem do terceiro aniversário da tomada de poder pelos talibãs.
Num comunicado divulgado na quinta-feira, 15, a organização de defesa dos direitos humanos fala do regresso dos castigos corporais aquele país da Ásia central, incluindo a flagelação e a execução públicas, o corte de membros, a lapidação e outras formas de maus-tratos e tortura.
“A comunidade afegã debate-se com três anos de frustração não resolvida enquanto os Talibãs, autoridade de facto no Afeganistão, cometem violações dos direitos humanos e crimes ao abrigo do direito internacional contra o povo afegão, especialmente mulheres e raparigas, com absoluta impunidade”, afirma a Amnistia no comunicado enviado às redacções.
Para a recolha de dados sobre a situação, a Amnistia ouviu mais de 150 pessoas, incluindo defensores afegãos dos direitos humanos, académicos, mulheres e jovens activistas, representantes da sociedade civil e jornalistas. Com os dados recolhidos, a organização documentou as frustrações dos afegãos relativamente à resposta da comunidade internacional, bem como os seus receios e sugestões para o futuro.
No caso das mulheres, por exemplo, mais de 20 afegãs defensoras dos direitos humanos em 21 províncias do país contaram à AI que perderam o controlo sobre todos os aspetos das suas vidas. “As mulheres com quem falámos costumavam trabalhar em diversas áreas, incluindo direito, política, jornalismo, educação e desporto. Após três anos sob o domínio dos talibãs, todas elas fizeram eco do sentimento de não serem ‘ninguém’, com oportunidades limitadas de emprego e de contribuição económica ou cultural”, resume o comunicado.
Razia, uma defensora dos direitos humanos da província afegã de Kunduz, afirmou: “Dizem às mulheres que perderam o seu poder de intervenção, o seu emprego e o seu estatuto económico, que o merecem, e que o regresso dos talibãs é um passo positivo para acabar com aqueles que pregavam o adultério em nome dos direitos humanos e dos direitos das mulheres”.
Os talibãs, diz a Amnistia, rejeitaram as alegações de perseguição em razão do género, afirmando que estão a cumprir a sharia (lei islâmica) e a “cultura afegã”. Mas a Amnistia acrescenta que “todos os decretos e políticas restritivos e repressivos que foram ostensivamente introduzidos como medidas temporárias para garantir a segurança da população, especialmente das mulheres e das raparigas” continuam em vigor após este tempo.
Uma outra mulher, identificada como Nazifa, professora na província afegã de Mazar-e-Sharif, acrescentava: “Disseram-nos que os talibãs tinham mudado. Disseram-nos para não estragarmos os esforços de paz. Disseram-nos que o mundo nos apoiaria. No entanto, hoje estamos a viver as nossas misérias sozinhas.”
Comunidade internacional falhou
A maioria esmagadora dos testemunhos recolhidos pela Amnistia traduz a ideia de que “a comunidade internacional falhou com o povo do Afeganistão”, refere Samira Hamidi, responsável pela campanha regional da Amnistia Internacional para o Sul da Ásia. “Não só não conseguiu responsabilizar os talibãs pelos crimes e violações dos direitos humanos, como também não conseguiu definir uma orientação estratégica para evitar mais danos”, afirmou.
As 150 pessoas foram ouvidas em 21 províncias do Afeganistão e ainda, entre as comunidades de exilados afegãos em outros dez países: EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Bélgica, Espanha, Suíça, Itália, Canadá e Paquistão.
O sistema de justiça legal e formal é outro problema grave. Em novembro de 2022, o líder supremo talibã emitiu uma ordem obrigatória para a plena aplicação da lei da sharia no Afeganistão: “Os talibãs anunciaram que não é necessária a participação de advogados nos julgamentos. Não acreditam em sistemas de justiça, mas baseiam-se fortemente na sua interpretação da sharia, liderada por académicos religiosos das madrassas (escolas islâmicas), sem educação jurídica formal”, explicou Ahmad Ahmadi, um antigo advogado que vive atualmente no exílio na Europa.
A sociedade civil está em declínio, descreve o documento da Amnistia, com os defensores dos direitos humanos, incluindo as mulheres, as organizações de base, os jornalistas e os activistas políticos a serem vistos como inimigos. As pessoas que protestam sofrem desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, prisão, tortura e outros maus-tratos. Muitas são obrigadas a fugir do país temendo represálias, deixando para trás famílias e empregos. E há ainda centenas de pessoas presas no Irão, Paquistão e Turquia, onde enfrentam dificuldades jurídicas e financeiras e estão mesmo expostas à deportação forçada.
Os defensores de direitos humanos que continuam a viver no país não são convidados para debates importantes porque isso é “demasiado arriscado”. E os que estão no exílio são excluídos porque não vivem no Afeganistão e não são considerados “legítimos”, acusa ainda Tabasoom Noori, activista pelos direitos das mulheres exilada nos Estados Unidos.
A crise dos direitos humanos no país, diz a Amnistia, é minada pela retórica e pela propaganda dos talibãs de que o Afeganistão é agora “mais seguro”, com uma economia em crescimento, onde os cidadãos são respeitados e dignificados de acordo com a sharia e a cultura do país.
Samira Hamidi resume: “Ao fim de três anos, a frustração na comunidade afegã é palpável. Inúmeras declarações e reuniões depois, o mundo continua a torcer as mãos enquanto os talibãs continuam a violar os direitos humanos e a desfazer vinte anos de trabalho árduo em todas as esferas da vida pública e privada”. Por isso, diz z responsável da AI, é necessário encontrar plataformas para debater “soluções eficazes a longo prazo” e a comunidade internacional deve empenhar-se em “respeitar a multiplicidade de vozes da comunidade e abster-se de um envolvimento sem princípios com os talibãs, que só prejudicaria os esforços colectivos”.
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