Fora um enorme desgosto, mas Leontina
não aprendera a lição… a culpa era sempre dos outros e ela parecia ter o condão
de magoar as pessoas mais próximas… não sabia viver com os outros, nem para os
outros… e assim ia afastando todos, amigos e pretendentes, do seu convívio!
Agora aos 60 e tal anos, já reformada do
escritório que herdara, mas que toda a vida detestara, Leontina, com pouco ou
nada que fazer, mas ainda uma mulher bonita e vistosa, aparentando ser mais
nova, continuava centrada em si, no seu aspeto exterior… quando saía à rua,
ainda sentia o desejo de ser admirada… olhava-se nos vidros das montras e dos
carros, caminhava com um passo estudado, e em casa, quando se via ao espelho,
não suportava as imperfeições da pele envelhecida, que procurava disfarçar com
os melhores cremes e amargurava-se até, cada vez que descobria uma nova ruga,
um quilo a mais, ou mais algum sinal de flacidez no pescoço… vestia-se como
uma jovem, frequentava o ginásio, a piscina, o cabeleireiro, as melhores lojas
de roupa… ia ao cinema, ao teatro, concertos e ballet, restaurantes de luxo,
mas andava sempre sozinha!
Vivia apenas com uma velha empregada, a
Clotilde, no casarão de família que herdara e com o seu feitio orgulhoso e
distante já quase nem sequer se relacionava com a única sobrinha que lhe
restava, depois da morte do irmão e da cunhada. Na verdade, incompatibilizara-se com Maria - uma jovem assistente social amorosa e muito trabalhadora que um
dia lhe batera à porta e lhe pedira um favor: não tinha casa, acabara o curso,
queria muito casar e lembrara-se de pedir à tia para lhe alugar o rés-do-chão daquele casarão, ou apenas uma pequena parte da casa que não usava… mas
Leontina recusara de imediato sem uma razão plausível, pelo que a pouca relação
existente esfriara e os escassos contatos tinham passado a ser apenas
telefónicos…
Leontina estava convencida de que não
precisava de ninguém. Com o seu dinheiro poderia sempre comprar tudo o que
precisasse… mas os anos iam passando…
Clotilde, a empregada, sensível e com
bondosa, conhecera bem os pais de Leontina e por isso, tinha muita pena por ver
a ‘sua menina’ sempre sozinha, fechada em si mesma, sem preparar nem saber
aceitar a velhice que se aproximava e muitas vezes lhe dizia numa carinhosa
censura:
- ‘…mas a menina que é tão inteligente
não vê que já não é criança? Por que se afastou de todos, até da sua sobrinha
Maria, tão boa pessoa? Um dia vai precisar dela… todos precisamos uns dos
outros…’ Porém Leontina não ligava e irritava-se a sério com Clotilde…
Num certo fim de tarde escuro e chuvoso,
à saída do ginásio - como sempre, ignorando o jovem sem-abrigo nepalês ali
encolhido e sentado no chão à chuva, a pedir esmola silenciosamente - Leontina
atravessou a rua a correr, e foi violentamente atropelada por uma moto, cujo
condutor fugiu, deixando-a caída no chão, com o rosto a sangrar abundantemente,
incapaz de se levantar.
O nepalês viu-a. Não havia vivalma
naquele momento, a não ser ele, e de um salto pôs-se em pé e correu para a
ajudar, arrastando-a cuidadosamente para o passeio… ‘I’ll get an ambulance!’
Em seguida, foi ao ginásio, por sinais
pediu ajuda e em breve estavam várias pessoas à volta de Leontina e uma
ambulância a chegar.
Ao ser levada, Leontina ainda abriu a
mala e num gesto espontâneo entregou todo o dinheiro que tinha ao jovem
nepalês, dizendo:
‘Para ti! Obrigada!’ Ele não queria
aceitar, mas Leontina insistiu e num murmúrio, apenas perguntou:
-‘Your name?’
-‘Sunil, madam…’
-‘Obrigada, Sunil…’
Quando voltou a si, muitas horas depois,
já no hospital, debaixo de uma luz intensa, teve a sensação de reconhecer o
rosto de alguém… batas verdes, um cheiro a desinfetante, mas voltou a
adormecer…
No dia seguinte, ainda no recobro,
Miguel veio ter com ela. Fez-lhe uma festa na mão e baixinho disse-lhe:
- ‘Não tenhas medo… o pior já passou!
Nunca pensei que um dia teria de te operar… mas tudo correu bem! ‘
- ‘Que me aconteceu?’
- ‘Foste atropelada por um rapaz numa
moto, mas abandonou-te e fugiu. Foi um rapazito nepalês, um sem-abrigo que te
socorreu… salvou-te a vida, podes crer! Mas agora tens de descansar… voltarei
mais tarde!’
Passaram-se dias e semanas… Leontina
esteve longo tempo fechada entre quatro paredes no hospital. Partilhou o quarto
de três camas com outros doentes. Ouviu as suas histórias. Viu gente morrer a
seu lado. E aos poucos, alguma coisa a fazia pensar que apesar de tudo, estar
viva era afinal um presente… talvez d´Aquele a Quem nunca ligara… Miguel
continuava a passar diariamente no quarto para a ver, mas apenas como médico e
amigo. Leontina perguntara-lhe um dia, se tinha casado e Miguel respondera
afirmativamente e contara-lhe que tinha três filhos pequenos. Depois de um
breve silêncio, Leontina estendeu-lhe a mão e olhando-o com uma sombra de
tristeza, sorrira e comentara apenas: - ‘Ainda bem que és feliz! Fico contente
por ti… merecias!’
Clotilde e a sobrinha Maria, visitavam-na
com frequência e procuravam animá-la. Os estragos tinham sido muitos… quando se
vira ao espelho pela primeira vez, apesar de avisada com todo o cuidado por
Miguel, de que sofrera vários traumatismos graves na cara e na cabeça, teve um
choque tremendo. Não se reconhecia… com tantas cicatrizes naquele rosto agora
deformado… e isso era bem pior do que ter de usar canadianas por causa dos
estragos sofridos na coluna…
Entretanto Leontina mudou para outro
departamento de reabilitação, num edifício próximo do hospital. Aí conheceu uma
jovem em cadeira de rodas, que dava nas vistas pela sua alegria. Sempre com uma
flor na cabeça, a cantarolar, andava na sua cadeira por todas as enfermarias e
rapidamente travava conhecimento e fazia amizade com os outros doentes. Tinha
sempre uma palavra de especial carinho para com os que estavam mais tristes e
desanimados. Leontina admirava-a cada vez mais! Ela emprestava-lhe livros de
vidas inspiradoras e Leontina ia absorvendo tudo como uma esponja. Um dia, a
sua nova amiga saiu em passeio com a família e no regresso contou-lhe que tinha
ido a Fátima e visitara o Centro João Paulo II, para deficientes profundos.
Vinha muito impressionada com tudo o que ali vira. E numa parede encontrara um
pequeno texto que queria partilhar com Leontina. Tinha sido deixado por um
jovem voluntário basco de Bidasoa, e tinham resolvido emoldurá-lo e pendurá-lo
para todos o poderem ler. Mostrou-lhe a foto que tirara antes de vir embora: Leontina
pediu-lhe a foto, guardou-a e todos os dias a olhava! Era uma nova inspiração…
Entretanto, em conversa com Maria e
Clotilde, Leontina começou a falar-lhes no regresso a casa e em fazer obras no
casarão por forma a transformar os espaços e poder fazer um apartamento para
Maria e seu marido (‘se eles quisessem…’) assim como transformar o rés-do-chão
numa casa de acolhimento para jovens sem-abrigo e abrir uma sala de aulas para
estrangeiros. Maria e Clotilde ficaram mudas de espanto… que grande
transformação! Claro que tudo isto só poderia ser concretizado se Maria, como
assistente social, pudesse ajudar e Clotilde também… e elas de imediato
manifestaram o seu entusiasmo e adesão…
E os planos de Leontina começaram a sair
do papel e a tomar forma…pouco tempo depois começavam os trâmites legais para a
criação de uma associação e as obras também!
Leontina já não era a mesma pessoa…e
mostrava-se decidida a mudar a sua vida e a vida de outros!
Durante esse período, acabado o tempo de
internamento, Maria levou Leontina e Clotilde para sua casa.
Entretanto, Leontina voltara a passar no
local do atropelamento para ver de novo o sem-abrigo nepalês. Ele ali
continuava, sentado no chão, sempre à espera de alguma ajuda. Leontina quis
falar com ele e através da janela do carro chamou-o pelo nome: - ‘Sunil!’
Ele reconheceu-a de imediato. Levantou-se,
e Leontina, sorrindo, estendeu-lhe a mão através da janela.
- ‘Sunil, you saved my life! obrigada!’
Sunil sorriu também. Sim, de facto ele
salvara-lhe a vida… e Leontina tinha planos para lhe agradecer o seu gesto.
Deixou-lhe algum dinheiro, explicou-lhe que lhe ia arranjar alojamento e
trabalho numa nova associação e prometeu voltar em breve.
Ao registar o nome da associação com o
nome de ‘Metanoia’, os funcionários, curiosos, quiseram saber que nome era
aquele… com um grande sorriso, Leontina explicou-lhes que se tratava de uma
palavra grega e significava ‘transformação, mudança, conversão ‘…os
funcionários entreolharam-se admirados… mal sabiam eles a história de Leontina!
Fátima Fonseca |