Dias há em que
nos perguntamos por que raios levantamos. Na noite anterior ventara muito, a
ponto de tombar galhos, palmas, folhas, coalhando o pátio de entulho. Nada que
entusiasme um vivente. Procurei o ninho do maçarico do banhado, onde a fêmea
pacientemente chocara e onde a vi tratando pelo menos um filhote. Cena bonita,
que enchia de candura o agreste maricá, onde se albergara aquela força
reprodutiva que enche o universo de beleza e esperança.
O ninho, com
galhos entrelaçados, sumira. Cheio de inocente expectativa, busquei vestígios e
vi o filhote, sem vida, na água do pequeno lago. Em meio aos aturdimentos quotidianos, à derrocada moral do país, como moldura de nossos dias, aquela vida
interrompida me cobrou minutos de tristeza. Teria falhado a intuitiva
engenharia da ave, não ancorando suficientemente seu ninho, ou teria o vento
beirado o excepcional? Fato pequeno, talvez, o lastimei enquanto a avalanche quotidiana não o elidiu. Num dia que começara abafado, teria sido melhor
permanecer na cama.
Se houvesse
olhado um pouco mais para a pequena gata de minha filha, com suas traquinices,
discrição e soberba elegância, talvez houvesse ombreado sua imemorial vagabundagem
e não teria pulado da cama. Tarde demais, meras conjecturas de um dia que
começara mal, com a morte prematura de um pássaro que viera habitar este
universo de Deus.
Um dia aziago,
como aziagos têm sido os dias do Brasil, nos quais desgastamos o que nos resta
de esperança. A esperança é sempre jovem, conserva o frescor dos sonhos e
ideais, mas pode tornar-se frustração. Os fatos recentes têm o poder de
nocautear nossas esperanças. Se não nos esquivarmos dos cruzados que nos
desfere a podridão de nossa política ou dos ganchos poderosos da suspeição que
paira sobre nossa suprema corte, iremos à lona.
Convivemos com certas
coisas inaceitáveis, como a infância miserável ou abandonada. Fomos nos
acostumando aos maiores absurdos e, devagarinho, passamos a considerar tudo
normal. Ou nos revelamos perplexos quando vemos catadores pelas ruas arrastando
seus “carros” como alimárias? Como admitimos isto com a maior platitude? Como
mostrar-se indiferente quando miseráveis em Porto Alegre dormem, ao relento,
numa praça em cujas laterais se encontram o Palácio Piratini, a Catedral e o
Teatro São Pedro? Ou em São Paulo, onde indigentes dormem no chão, em frente ao
prédio da secretaria de justiça do estado mais poderoso do país?
Tenho me
dedicado, entre outras leituras, às biografias. A despeito de sua
tendenciosidade, haja vista que em geral são laudatórias, as biografias são
instrutivas e permitem que se conheça um pouco sobre personalidades. Neste
momento avanço nas páginas de “A vida de
Rui Barbosa”, o tão celebrado orador, criador de frases lapidares como “de tanto ver triunfar as nulidades ...”,
que as pessoas penduravam na parede ou colocavam sob o vidro de suas mesas de
trabalho. Abolicionista, cativou simpatias naturais por conta da nobre causa. O
biógrafo descreve um embate de Rui com Silveira Martins, aquele das “Ideias não são metais que se fundem”. Ele
teria massacrado Martins. Seja como for, bater nos aliados do Império não era
lá tarefa das mais difíceis quando o trono ensaiava seu canto do cisne.
Vaidoso, ferrenho anticlericalista, Rui manteve-se entre ambições e mágoas, por
vezes revelando demasiada suscetibilidade.
Parece que
herdamos, na política, uma tradição de muita oratória e pouca ação. Sobejamos
funcionários públicos, civis e militares, que se aposentaram precocemente e
serão sustentados, quem sabe, por mais de trinta anos ... E ai de quem
contestar! O espírito corporativo, que une contrários na defesa de interesses,
entra em cena e preserva direitos de casta. Se a previdência única é uma das medidas
moralizadoras, a verdade é que não está no horizonte visível.
Enquanto isto, difíceis
os dias dos que lutam fora do condomínio dos privilegiados. Mal resistem ao
ciclone de injustiças que varre nossas melhores esperanças. Não há maricá que
nos proteja enquanto predominam discursos demagógicos. Não sabemos como sair da
encalacrada em que nos metemos. Parece mais fácil matar fantasmas a tiros que
punir ladrões do dinheiro público.
Adotamos sempre o
mesmo discurso e não atacamos a essência. Como já disse Mark Twain - ou talvez
Maslow,- “Quem só tem martelo pensa que
tudo é prego”. Nos faltam imaginação,
verdade e sobretudo justiça. Dias aziagos estes, em que morre o que não deveria
morrer.
J. B. Teixeira |
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