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segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Dias aziagos

Dias há em que nos perguntamos por que raios levantamos. Na noite anterior ventara muito, a ponto de tombar galhos, palmas, folhas, coalhando o pátio de entulho. Nada que entusiasme um vivente. Procurei o ninho do maçarico do banhado, onde a fêmea pacientemente chocara e onde a vi tratando pelo menos um filhote. Cena bonita, que enchia de candura o agreste maricá, onde se albergara aquela força reprodutiva que enche o universo de beleza e esperança.

O ninho, com galhos entrelaçados, sumira. Cheio de inocente expectativa, busquei vestígios e vi o filhote, sem vida, na água do pequeno lago. Em meio aos aturdimentos quotidianos, à derrocada moral do país, como moldura de nossos dias, aquela vida interrompida me cobrou minutos de tristeza. Teria falhado a intuitiva engenharia da ave, não ancorando suficientemente seu ninho, ou teria o vento beirado o excepcional? Fato pequeno, talvez, o lastimei enquanto a avalanche quotidiana não o elidiu. Num dia que começara abafado, teria sido melhor permanecer na cama.

Se houvesse olhado um pouco mais para a pequena gata de minha filha, com suas traquinices, discrição e soberba elegância, talvez houvesse ombreado sua imemorial vagabundagem e não teria pulado da cama. Tarde demais, meras conjecturas de um dia que começara mal, com a morte prematura de um pássaro que viera habitar este universo de Deus.

Um dia aziago, como aziagos têm sido os dias do Brasil, nos quais desgastamos o que nos resta de esperança. A esperança é sempre jovem, conserva o frescor dos sonhos e ideais, mas pode tornar-se frustração. Os fatos recentes têm o poder de nocautear nossas esperanças. Se não nos esquivarmos dos cruzados que nos desfere a podridão de nossa política ou dos ganchos poderosos da suspeição que paira sobre nossa suprema corte, iremos à lona.

Convivemos com certas coisas inaceitáveis, como a infância miserável ou abandonada. Fomos nos acostumando aos maiores absurdos e, devagarinho, passamos a considerar tudo normal. Ou nos revelamos perplexos quando vemos catadores pelas ruas arrastando seus “carros” como alimárias? Como admitimos isto com a maior platitude? Como mostrar-se indiferente quando miseráveis em Porto Alegre dormem, ao relento, numa praça em cujas laterais se encontram o Palácio Piratini, a Catedral e o Teatro São Pedro? Ou em São Paulo, onde indigentes dormem no chão, em frente ao prédio da secretaria de justiça do estado mais poderoso do país?

Tenho me dedicado, entre outras leituras, às biografias. A despeito de sua tendenciosidade, haja vista que em geral são laudatórias, as biografias são instrutivas e permitem que se conheça um pouco sobre personalidades. Neste momento avanço nas páginas de “A vida de Rui Barbosa”, o tão celebrado orador, criador de frases lapidares como “de tanto ver triunfar as nulidades ...”, que as pessoas penduravam na parede ou colocavam sob o vidro de suas mesas de trabalho. Abolicionista, cativou simpatias naturais por conta da nobre causa. O biógrafo descreve um embate de Rui com Silveira Martins, aquele das “Ideias não são metais que se fundem”. Ele teria massacrado Martins. Seja como for, bater nos aliados do Império não era lá tarefa das mais difíceis quando o trono ensaiava seu canto do cisne. Vaidoso, ferrenho anticlericalista, Rui manteve-se entre ambições e mágoas, por vezes revelando demasiada suscetibilidade.

Parece que herdamos, na política, uma tradição de muita oratória e pouca ação. Sobejamos funcionários públicos, civis e militares, que se aposentaram precocemente e serão sustentados, quem sabe, por mais de trinta anos ... E ai de quem contestar! O espírito corporativo, que une contrários na defesa de interesses, entra em cena e preserva direitos de casta. Se a previdência única é uma das medidas moralizadoras, a verdade é que não está no horizonte visível.

Enquanto isto, difíceis os dias dos que lutam fora do condomínio dos privilegiados. Mal resistem ao ciclone de injustiças que varre nossas melhores esperanças. Não há maricá que nos proteja enquanto predominam discursos demagógicos. Não sabemos como sair da encalacrada em que nos metemos. Parece mais fácil matar fantasmas a tiros que punir ladrões do dinheiro público.

Adotamos sempre o mesmo discurso e não atacamos a essência. Como já disse Mark Twain - ou talvez Maslow,- “Quem só tem martelo pensa que tudo é prego”.  Nos faltam imaginação, verdade e sobretudo justiça. Dias aziagos estes, em que morre o que não deveria morrer.

J. B. Teixeira



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