quinta-feira, 4 de outubro de 2018
Nota de Agenda + Entrevista de António Marujo
Luciano Manicardi no final de 2012, em Lisboa
(foto © António Marujo)
Um livro, uma conferência sobre a mística do quotidiano e um encontro temático de dois dias sobre o seguimento de Jesus. Luciano Manicardi, prior da comunidade monástica de Bose (norte de Itália) e autor de A Caridade dá Que Fazere de vários outros livros, estará a partir desta sexta-feira, 5 de Outubro, em Lisboa, para várias actividades públicas que incluem a apresentação de um novo livro, Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C(ed. Paulinas).
Sexta, dia 5, às 21h, Manicardi fará uma conferência sobre O quotidiano – lugar de revelação antropológica (entrada livre), no Centro Cultural Franciscano
(Largo da Luz, em Carnide. Sábado e domingo, dias 6 e 7, Manicardi, que junta à investigação bíblica o olhar da antropologia e da psicologia, animará um encontro (sujeito a inscrições) sobre o tema No seguimento de Jesus. Será no Mosteiro das Monjas Dominicanas, do Lumiar (Quinta do Frade, à Praça Rainha D. Filipa), também em Lisboa.
No livro Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C, Manicardi aborda os textos da liturgia católica do próximo ano litúrgico (que se inicia no final de Novembro). “No Ano C da liturgia dominical, a Igreja propõe o Evangelho segundo Lucas à escuta e meditação por parte dos crentes. É um Evangelho com características muito especiais, como nos mostra frei Luciano Manicardi: ‘o Evangelho torna-se literatura’”, diz a editora, a propósito do livro. Na mesma nota, lê-se ainda que o evangelista Lucas se revela “um homem de Igreja inteligente e avisado, guiado por sentido pastoral evangélico e por um profundo sentido de humanidade”.
A estrutura da obra lucana “é muito simples: funda-se num plano geográfico e tem, no caminho de Jesus rumo a Jerusalém, ou antes, rumo ao Pai, o seu eixo condutor; a atenção prestada ao tempo leva Lucas a abordar o problema de como viver o Evangelho no dia a dia, com temáticas que têm levado várias pessoas a falar de ‘Evangelho social’ a propósito do terceiro Evangelho; do quotidiano, enfim, faz parte a relação interpessoal, a relação com o outro, e a confiança no amor misericordioso do Pai.”
Estas indicações darão o mote também para a conferência de sexta à noite. Nas suas obras, o prior de Bose (uma comunidade ecuménica de monges, que inclui homens e mulheres) confirma, como diz a editora, a “densidade humana e espiritual invulgares”, bem como o “aprofundado conhecimento” e a grande “sabedoria” na abordagem de questões de “grande relevância para a reflexão sobre a sociedade e a vivência cristã”. (Aqui podem ver-se outros elementos sobre os restantes títulos de Manicardi publicados em Portugal: Viver uma Fé Adulta – Itinerário para um Cristianismo credível, Memória do limite – A condição humana na sociedade pós-mortal, Ao Lado do Doente – O sentido da doença e o acompanhamento dos doentes e Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano B.)
Manicardi esteve já em Portugal por várias vezes, quer a convite da editora, quer da Fundação Betânia (entidades que o convidam de novo desta vez) quer, também, pela organização da Semana Social. Há seis anos, no Porto, Manicardi fez uma das intervenções de fundo da Semana Social desse ano, comentando a encíclica Deus Caritas Est, de Bento XVI.
Em Fevereiro de 2013, publiquei na revista Mensageiro de Santo António uma entrevista com Luciano Manicardi, a propósito dos seus livros A Caridade dá Que Fazer e Viver uma Fé Adulta. É esse diálogo que a seguir se reproduz.
A realidade humana é o lugar teológico mais importante
Diz que a tradição sapiencial bíblica nos ensina a fazer do cristianismo uma arte de viver o eros, a sofrimento, o trabalho ou a família. Luciano Manicardi, [prior] da comunidade monástica de Bose (norte de Itália), que reúne homens e mulheres, esteve em Portugal por ocasião da recente Semana Social da Igreja e da apresentação de dois livros seus.
P. – No seu livro A Caridade dá Que Fazer, propõe reaprender a “gramática da caridade”. Esta necessidade é hoje mais urgente?
R. – Sim, porque há cada vez mais famílias e pessoas empobrecidas, com necessidade de assistência e sustento elementar. O meu receio é que, na actual crise, principalmente económica e financeira, os nossos governos intervenham com receitas muito técnicas, mas esqueçam a problemática social e familiar das pessoas. A justiça, que é a forma social da caridade, deve ter isto em conta.
As comunidades cristãs deveriam mobilizar-se, mais que nunca neste momento, para ajudar, criar uma rede, um tecido humano que mude o modo de as pessoas viverem juntas. De outro modo, não creio que, apenas com medidas económicas, a situação mude.
Diz que a atenção ao outro e ao corpo do outro é essencial para o exercício da caridade. Isto é muito mais que os índices económicos.
– Claro. Uma leitura atenta da Escritura, em particular das leis do Antigo Testamento [AT] que podem parecer longe da nossa situação, mostra-nos elementos perenes que são importantes ainda hoje.
Há uma lei do AT que diz: “Não oprimirás um estrangeiro (...) vós conheceis a respiração do estrangeiro residente, porque fostes estrangeiros residentes na terra do Egipto” [Éxodo 23, 9] – são os emigrantes têm que fazer os trabalhos mais pesados e difíceis. E outra que diz: “Não imporás juros (...) Se penhorares o manto do teu próximo, devolver-lho-ás até ao pôr-do-sol, porque a capa é tudo o que ele tem para cobrir a nudez do seu corpo; com que é que ele se deitaria?” [Êx. 22, 24-25]
Isto significa que uma lei não é feita apenas para governar melhor as relações sociais, mas deve também humanizar, ter em conta a humanidade do outro.
Quando diz que devemos valorizar a tradição sapiencial bíblica, o que podemos aprender de livros como Job, Cântico dos Cânticos, Qohélet, Provérbios...?
– A tradição sapiencial ensina-nos a tomar a sério a realidade, a experiência. Devia impedir-nos de fazer afirmações teológicas e espirituais que entrem em conflito com a realidade. A experiência deve estar presente para falar de Deus. O livro de Job ensina que não basta estar junto de um infeliz para se estar próximo dele. É preciso muito mais. Afinal, foi Job que disse de Deus as coisas mais correctas. Os seus amigos fizeram um discurso teológico irrepreensível, respeitador de todos os cânones. No entanto, Job, com a sua quase blasfémia, consegue dizer de Deus coisas mais certas, porque partem da realidade humana.
A tradição sapiencial ensina-nos a fazer do cristianismo uma arte de viver, com uma gramática própria do humano, a nível do eros (o Cântico dos Cânticos), do sofrimento, da doença e do luto (Job) ou de tantas situações perante as quais o livro de Qohélet [Eclesiastes] nos coloca. Devemos tomar seriamente o que é humano – o trabalho, a família, o social – como o lugar onde podemos viver o seguimento de Cristo, o lugar teológico por excelência.
É esse o modelo da santidade para os nossos tempos: tomar a sério a humanidade?
– A santidade está sempre plasmada pela acção do Espírito Santo na liberdade. Mas é verdade que, hoje, precisamos de recuperar uma santidade que seja profundamente humana. É importante, num tempo em que o transcendente custa a impor-se, podermos encontrar outro nível de eloquência da fé, que parta do humano. A partir de Jesus de Nazaré, a santidade que evangeliza é a que nasce da pessoa que enxerta a sua humanidade na humanidade de Cristo.
A santidade é identificada com a santidade individual. Os cristãos estão desafiados a propor modelos operativos de santidade comunitária?
– Estou convencido que sim. É um empobrecimento a redução, no Ocidente, da santidade a um modelo sobretudo individual. A santidade é pessoal e isso é irrefutável. A pessoa, singular, é chamada a tornar-se santa. Mas uma pessoa vive de relações, ninguém existe por si próprio, antes existe num contexto comunitário, eclesial, social... Trata-se de encontrar a maneira de tornar a santidade eloquente comunitariamente.
No Novo Testamento, o corpo é individual mas também é eclesial, composto de diversos membros – dos quais Paulo diz que os mais fracos são os mais importantes. Significa criar pequenas comunidades em que se vive a atenção ao pobre, com valores esquecidos ou menosprezados na nossa sociedade: a paciência, o perdão, a autoridade como serviço, a partilha de bens são maneiras de tornar eloquente o evangelho e narrar a santidade de Deus.
No livro Viver Uma Fé Adulta, diz que uma Igreja adulta é aquela onde as pessoas contam mais que as estruturas. Cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II, o que se deve fazer para ter esta realidade mais presente?
– Devemos ter a coragem de regressar ao Evangelho, à centralidade de Cristo, para descobrir que a Igreja é um corpo, não uma máquina. Numa máquina, há peças substituíveis. Se na Igreja uma pessoa vale pela função que desempenha, então não é importante por si. A Igreja deve, por isso, saber dizer uma palavra e colocar em prática uma outra forma de fazer as coisas.
Cinquenta anos depois do Vaticano II, a prática sinodal – que deveria ser o método com que a Igreja caminha, vive e toma decisões, para fazer as escolhas que sejam o mais próximo possível do Evangelho – deveria ser revigorada e colocada em prática.
Não está dito que um processo sinodal consiga resultados melhores que uma decisão tomada com autoridade. Mas o caminho é diferente: um caminho em que se escuta, em que a palavra do outro é importante e todos se sentem parte de uma comunidade de irmãos. A sinodalidade é caridade em acto, que faz com que as decisões sejam verdadeiramente fruto de “nós e o Espírito Santo” e não apenas de um ou de uma facção contra a outra.
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