Assim como há cabeças que parecem pequenas para tanto cabelo, há existências tão intensas e dinâmicas que poderiam abrigar várias vidas. Naturalmente não estamos falando de gente que prefere um sofá a um vento na cara, ou de alguém que busca o garantido e foge das incertezas. Dias atrás assisti um filme sobre Ernest Hemingway, retratando um pouco o período em que viveu em Cuba. Gostei do roteiro e de algumas ideias do escritor, do qual só lera o indefectível “O velho e o mar”, que parece estar para os adultos como “O Pequeno Príncipe” um dia esteve para as debutantes. Uma frase em particular me agradou. Não posso reproduzi-la fielmente, mas seu sentido era mais ou menos “você acaba sendo o resultado dos riscos que decidiu correr”.
Ícone literário da revolução bolchevique, o rude Máximo Gorki teve a vida como escola. No livro “As minhas Universidades” narra algumas de suas experiências como, por exemplo, guarda noturno numa estação ferroviária e estivador. Também retrata alguns malucos que teve como amigos, incluindo um que tomava tantos produtos químicos, com intenção experimental, que acabou perdendo os dentes. Gorki não foi um medíocre, mas sua notoriedade foi um tanto artificial. A revolução relegou Tolstoi e Dostoievski à categoria de burgueses. Decorridos cem anos a história colocou vírgulas no lugar certo e os pingos nos is.
Ainda assim Gorki não é de se jogar fora. Lembro de uma das melhores passagens do livro que mencionei, quando narra os conselhos que recebera de um escritor famoso. O notável disse que tinha boa técnica, mas sugeriu que escrevesse sobre o que vivera. Qualquer escrevinhador sabe que escrever sobre o que sentimos é muito mais fácil do que literalmente ficcionar. Contar de alguma forma, com estilo próprio, o que vivemos, ou pelo menos observamos bem de perto, sentindo o calor do aço na vida dos outros, é tarefa das mais fáceis e as laudas se enchem tão rapidamente que é preciso aparar os excessos. Dostoievski, para pegar um exemplo, foi deportado para a Sibéria, viveu o estertor do czarismo, era viciado em jogo, sobretudo na roleta, e padecia de males físicos, particularmente de epilepsia. Somadas ao seu gênio, suas experiências, que mal cabiam numa existência, se plasmaram em obras imortais.
Quis a sorte que lesse “As vidas de Miguel de Cervantes”, de Andrés Trapiello. Primoroso relato da vida do grande espanhol, o livro tem passagens maravilhosas. Se Camões era caolho, supostamente por conta de uma batalha na África, Cervantes era maneta. Teve sua mão esquerda dilacerada na batalha naval de Lepanto, marca histórica que quebrou o domínio otomano no Mediterrâneo. A esquadra turca era tida como imbatível e a vitória dos cristãos, liderados pela Espanha de Felipe II, foi um feito notável.
Cervantes conheceu muito bem a costa da Grécia e da África. Aos 28 anos, deixando para trás cidades que conhecera a fundo, como Roma, Florença e Veneza, tomou a embarcação La Sol, em Nápoles, que navegaria com outras três galeras. Depois de duas tempestades La Sol ficou à deriva e acabou capturada por piratas berberes, que aprisionaram a maior parte dos passageiros e os levaram para Argel, à época mais povoada que Roma. Cervantes revela em versos seu padecimento: “Quando cheguei prisioneiro e vi esta terra tão falada no mundo, que em seu seio tantos piratas abriga, acolhe e encerra, não pude premir do pranto o freio ...”.
Com tanta bagagem nas costas e o dom da escrita, Cervantes cunharia dom Quixote, um dos mais famosos personagens romanescos de todos os tempos, misto de ficção e de realidade, que está em cada um de nós. Quem não tem um lado Quixote? E é ele quem diz na casa dos duques que “Pela nossa grande experiência, sabemos que não é necessário ter muita prática nem muita habilidade nem muitas letras para ser um governador, pois há por aí centenas deles que mal sabem ler e governam como ladrões”. Cervantes continua atual. Revela alguns de seus traços na dedicatória de Novelas, como homem “de rosto aquilino, cabelo castanho, fronte lisa, olhos alegres e nariz curvo, (...), bigodes grossos, boca pequena, dentes nem pequenos nem grandes porque não tem mais de seis, e ainda assim mal alojados e mal distribuídos porque uns não se relacionam com os outros ...”. Quatro dias antes de morrer despediu-se com estrofes de seu protetor: “Posto já o pé no estribo, com as ânsias da morte”. Integrante da Ordem Terceira, foi amortalhado com o hábito franciscano, quando sua glória terrena ainda estava por começar.
J. B. Teixeira |
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