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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Pode ser mais simples

O mundo lida muito mal com a verdade. Disto não tenho a menor dúvida. O mundo a esconde atrás de versões e mentiras. Volta e meia diz até que a verdade existe, mas é quase sempre impossível descobri-la. Por vezes, porém, o que é muito pior, o mundo diz que ela sequer existe. Como conviver sem a verdade? Sem ela não há certo ou errado, nem culpados ou inocentes. 

Como a verdade é artigo raro nas prateleiras humanas, o convívio social além dos limites de nossos quintais torna-se complexo. Erguem-se códigos e mais códigos tentando disciplinar a sociedade. Dezoito séculos antes de Cristo foi escrito o Código de Hamurabi. Tinha 282 cláusulas, muitas das quais são sumárias penas de morte, como a que se segue: “Se alguém furta bens do Deus ou da Corte deverá ser morto; e mais quem recebeu dele a coisa furtada também deverá ser morto”. Como tudo que se relaciona à história, o Código de Hamurabi deve ser entendido dentro do contexto de sua época mas, cá entre nós, se esta cláusula fosse aplicada pelas redondezas teríamos uma sensível redução na densidade demográfica.

Discutir o papel de estatutos, códigos e leis resulta numa conversa árida. Cair nesta cilada com um advogado, então, pode resultar em horas de pura esterilidade para o leigo. Confesso que cometi este erro algumas vezes, até porque há advogados na família. Assim como um jornalista deleita-se com a comunicação e um engenheiro não vê as horas passarem quando mergulhado em cálculos e criações, os causídicos se entretêm com as leis. Como se fizessem embaixadinha com os códigos. Bonito, até, mas a coisa ganhou uma dimensão que preocupa.

Como no Brasil a criatividade legislativa parece infinita, não faltam leis. Os advogados, portanto, têm chuva garantida em sua horta. Quanto mais complicado é o contrato social de um país, mais ele requer a intermediação de intérpretes. Para os que tanto criticam a mediação de sacerdotes na religião, recomendo que parem um pouco para refletir. Afinal, o mundo mudou de tal jeito que, numa era em que mandam a tecnologia e a desagregação, logo logo nos dirão que para falar com Deus não precisaremos mais de um Padre, mas de um bom advogado.

Claro está que a lei civiliza a sociedade, tanto mais se voltada para a glorificação da verdade. Desde que se acredite que ela existe, como é o meu caso. Mesmo que ela seja uma agulha no palheiro. E a busquemos. Quando entretanto a lei se coloca a serviço da tergiversação, da malandragem, a sociedade perde o rumo. O excesso de leis causa enorme estrago porque cada um de nós se vai continuamente desatualizando quanto ao que é legal ou não, e assim beiramos a ilegalidade em cada esquina. Aliás, são tantas as leis produzidas que chego a me perguntar se existe alguém que não desrespeita nenhuma delas. Alguma vestal, alguém livre do mais venial pecadilho da legalidade. E se existir esta vestal, não se exalte, nem seja cabotina, porque nossos legisladores darão um jeito de colocá-la rapidinho no limbo das irregularidades.

Numa conversa com um doutor em leis, sobre a lengalenga dos códigos que não funcionam como deveriam - sobretudo porque a sociedade está corrompida,- disse que os mandamentos do decálogo mosaico poderiam bastar. Antes que me acusem de simplório, dou eu mesmo a face a tapa: um sistema ideal é aquele em que até os simplórios entendem como a coisa funciona. Mas dizer isto aos que erguem a torre de Babel das leis ou aos que tiram seu sustento da natural confusão nesta torre, é o mesmo que dizer a um dono de funerária que a imortalidade foi descoberta. A verdade, direta e límpida, pouparia muitos desgastes.

O mundo lida muito mal com a verdade. Tomemos um exemplo em que a verdade foi solapada. Em recente manifestação, o Papa Francisco condenou o genocídio dos armênios no início do século XX. Tabu com sérias implicações para quem quebrar o silêncio a este respeito na Turquia, a fala do Papa causou polêmica e desgaste diplomático. Por que não reconhecer o erro? O genocídio armênio é uma mancha na história humana, quando mais de um milhão de pessoas morreu de fome, marchando no inóspito para a morte. Por que não pedir perdão?

A vida pode ser mais simples, menos aparatosa, mais verdadeira. Mas não é o que aparece no horizonte do nosso tempo. Nosso contrato social está falido e cheio de remendos. No cipoal das leis chora mais quem pode menos. E raramente quem menos chora tem a verdade ao seu lado.

J. B. Teixeira



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