A morte aos 64 anos
António Marujo | 31 Dez 2024
Na sua poesia entravam os gatos com que vivia, as memórias da infância, um olhar arguto (e muitas vezes cáustico) sobre o mundo e os outros, a sexualidade, as suas leituras, os jogos de palavras, o corredor da sua casa, o bairro de Arroios onde morava, o quotidiano, Deus… “A minha poesia é uma poesia da vida menor. Não é a descoberta do caminho marítimo para a Índia”, escrevia Adília Lopes, que morreu no final de tarde da passada segunda-feira, 30, no Hospital de São José, em Lisboa.
O corpo de Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, será velado nesta quarta-feira, dia 1, na Capela do Rato, em Lisboa, a partir das 18h. O funeral realiza-se na quinta-feira, dia 2 de Janeiro, às 14h, para o Cemitério dos Prazeres, depois da missa de corpo presente presidida às 13h, pelo cardeal José Tolentino Mendonça.
A poetisa completava, acerca da sua obra: “É o caminho do corredor de minha casa entre a sala onde escrevo e a cozinha. É feminina. (…) É uma questão de mística e de vida monacal, de facto. Um ideal cristão é que toda a vida se torne oração. Esforço-me por isso.”
Vida, casa, mulher, oração, monaquismo, mística são ainda outras marcas da poesia (e da experiência quotidiana) de Adília, “uma das mais singulares vozes da poesia portuguesa”, como a definiu em comunicado a Assírio & Alvim, editora das suas obras mais recentes. Que em Setembro publicou uma nova edição de Dobra – Poesia Reunida (e alguns inéditos) de Adília Lopes.
“A Adília é uma das grandes vozes poéticas e místicas do Portugal contemporâneo. Ela é uma grande escavadora da realidade. É uma das pessoas mais corajosas que encontrei na minha vida”, dizia o cardeal Tolentino, na véspera de Natal, no podcast O Poema Ensina a Cair, de Raquel Marinho.
“É uma pessoa que, com o pouco que lhe foi dado, fez um dos milagres mais extraordinários que eu assisti”, acrescentava Tolentino Mendonça. “Porque é das vozes mais originais, mais singulares, mais autênticas. Mesmo dizendo aquilo que parecem baboseiras, a Adília é poeta, a Adília é absolutamente genial.”
Deus, a fé, a experiência religiosa, eram questões para Adília: “Deus é um boomerang/ e eu sou a sua filha pródiga”, escrevia em Sete Rios Entre Campos (1999). Ou ainda: “(…) só nos podemos queixar de não ser amados. Mas nem disso nos podemos queixar porque Deus ama-nos. E amou-nos sempre”, como afirmava em O Regresso de Chamilly (2000). Na apresentação da antologia Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa, Pedro Mexia e José Tolentino Mendonça escreviam, sobre “o caso inesperado” de Adília, “que parece demasiado humorística e prosaica para abordar a ‘questão’, mas que na verdade tem Deus em dezenas de poemas, um Deus que é um boomerang, um Deus na vida de bairro, um Deus da caridade, Deus como uma mulher a dias, um Deus que é um bicho, um cheiro e uma coisa vivida”.
“Detesto o sofrimento”
Nascida em Lisboa no dia 20 de Abril de 1960, Adília Lopes frequentou a licenciatura em Física, na Universidade de Lisboa, recorda a nota da Assírio & Alvim. Quando estava muito perto do fim abandonou o curso mas, como nota Luís Miguel Oliveira no perfil que dela traçou no Público, “são muitos os seus poemas, alguns recheados de equações e demonstrações, que testemunham o seu persistente fascínio pela matemática”. (ligação exclusiva para assinantes)
Adília Lopes publicou os seus primeiros poemas no Anuário de Poetas Não Publicados, da Assírio & Alvim, em 1984. No ano anterior, recorda ainda a editora, iniciara uma nova licenciatura, em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Desisti da licenciatura em Física e do mestrado em Linguística Portuguesa Histórica. Gosto muito de estudar. Não sou preguiçosa e não sou estúpida. Sofri muito. Andei muito triste. O ambiente em minha casa, em casa dos meus pais, era trágico. Adoeci. Não tive amigos”, recordava, como confissão, em Choupos.
O sofrimento foi uma marca da sua vida. “Detesto o sofrimento”, escreveu num verso único de Capilé (2016). No curto perfil publicado no portal da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, recorda-se que Adília Lopes frequentou dois colégios católicos no ensino primário: “Andei em dois colégios de freiras mas ia lá tão pouco que o que eu devo dizer é: Não andei em dois colégios de freiras” (Z/S, 2016). Mais tarde, abandonou a licenciatura “devido a uma psicose esquizo-afectiva, doença da qual sempre falou abertamente, fosse na sua poesia, crónicas, conferências ou entrevistas a meios de comunicação social”.
Em “Out of the past”, poema de Versos Verdes (1999), escreveu: “A minha vida/ foi um mau sonho/ mas agora é minha/ sou eu.” Mas ao longo do tempo também foi encontrando tábuas salvadoras. Poucos dias antes de “Igrejas”, escrevia “2 Livros”, um outro texto de Bandolim (2016): “Em Um olhar sobre a cidade, Dom Hélder Câmara recomenda Poemas para rezar de Michel Quoist. A leitura destes dois livros aos 21 anos salvou-me a vida.”
“Uma grande agitadora”
A afirmação literária de Adília Lopes surge em 1985, em edição de autor, quando publica o seu primeiro livro de poesia, Um Jogo Bastante Perigoso. De uma obra poética que, reunida, deu mil páginas, a editora destaca ainda os livros Irmã Barata, Irmã Batata (2000), Manhã (2015), Bandolim (2016), Estar em Casa (2018), Dias e Dias (2020), Pardais (2022) e Choupos (2023). Mas pode ainda acrescentar-se O Poeta de Pondichéry, um dos seus livros mais considerados e traduzidos. A também cronista, tradutora e documentalista tem livros publicados em alemão, castelhano, francês, inglês, italiano e neerlandês, entre outras línguas, além de a sua obra estar incluída em antologias publicadas em Portugal e no estrangeiro.
A poesia de Adília Lopes faz-se muito de memórias autobiográficas, de objectos, sons e vozes do seu quotidiano, citações dos seus autores ou livros preferidos: a Bíblia e autores de matriz católica como Ruy Belo, Nuno Bragança ou Sophia de Mello Breyner Andresen. Mas também, como recorda o citado texto do Público, a Condessa de Ségur ou Enid Blyton, leituras de infância, e ainda o semiólogo e filósofo Roland Barthes ou Sylvia Plath. Luís Miguel Oliveira cita a afirmação de Adília Lopes no colóquio que a Fundação Gulbenkian dedicou à autora de Contos Exemplares: Sophia, confessava, ensinara-lhe que “o mundo do poema é limpo e rigoroso: nada de coisas farfalhudas, nada de aldrabices”.
Era assim o olhar de Adília, “uma grande agitadora”, como também referia Tolentino Mendonça na conversa com Raquel Marinho: limpo, rigoroso, muitas vezes contraditório, uma questão de vida ou de morte, uma luta corpo a corpo. Um dos poemas do seu primeiro livro tem o título “Arte poética” e resume esse labor tenso: “Escrever um poema/ é como apanhar um peixe/ com as mãos/ nunca pesquei assim um peixe/ mas posso falar assim/ sei que nem tudo o que vem às mãos/ é peixe/ o peixe debate-se/ tenta escapar-se/ escapa-se/ eu persisto/ luto corpo a corpo/ com o peixe/ ou morremos os dois/ ou nos salvamos os dois/ tenho de estar atenta/ tenho medo de não chegar ao fim/ é uma questão de vida ou de morte/ quando chego ao fim/ descubro que precisei de apanhar o peixe/ para me livrar do peixe/ livro-me do peixe com o alívio/ que não sei dizer.”
Sem a poetisa para continuar a escrever, resta desejar, como ainda há dias fazia o cardeal Tolentino na entrevista já citada: “Espero que os leitores continuem a amar muito a sua poesia e que a comunidade dos seus leitores, seja em Portugal ou no Brasil, possa crescer sempre mais.” Ou, como escreveu Adília em Le Vitrail La Nuit/A Árvore Cortada (2006): “A minha história/ é outra/ e começa agora// Estou sempre/ a começar.”
(Em 2 de Maio de 2010, Adília Lopes leu poemas seus na Capela do Rato, em Lisboa; o vídeo desse momento está na página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da Igreja Católica, que pode ser visto a seguir:)
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