
Papa Francisco | 14/01/2025
“Para a Terra Santa, o caminho a percorrer apenas pode ser o traçado pelos acordos de Oslo de 1993”, ou seja, “aquela solução sábia dos dois Estados bem delimitados e de Jerusalém com um estatuto especial”, escreve o Papa na sua Autobiografia, que nesta terça-feira é posta à venda, com o título Esperança (edição Nascente). “Qualquer solução edificada sobre a vingança e a violência, pelo contrário, seja onde for, nunca poderá ser paz, e não fará senão espalhar novas sementes de ódio e ressentimento, geração após geração, numa cadeia infinita de prepotências.”
Nesta primeira autobiografia publicada por um papa, Francisco acrescenta ser “suficientemente velho para ter visto que a guerra “é sempre um caminho sem meta: não abre perspetivas, não resolve nada, gangrena tudo, e deixa o mundo pior do que o encontrou”. E conclui: “É uma irracionalidade criminosa.”
Publicado em várias línguas e em mais de 100 países, Esperança inclui fotografias privadas e inéditas. A editora diz que o livro deveria ter visto a luz apenas após a sua morte, mas o Jubileu que a Igreja Católica assinala durante este ano, e o tempo que vivemos, levaram-no a decidir pela difusão do livro agora.
O texto usa o humor, percorre a história da emigração dos seus avós de Itália para a Argentina, a sua infância e juventude e o seu percurso como padre e bispo até ao papado e à atualidade, cruzando as histórias com as reflexões que tece a propósito de temas como a guerra, migrações, crise ambiental, política social, condição da mulher, sexualidade, desenvolvimento tecnológico, futuro da Igreja e das religiões.
Escrito com a colaboração de Carlo Musso, ex-diretor editorial da Piemme, o livro é “o relato de um caminho de esperança”. Por isso, escreve Francisco: “Não fala unicamente do que foi, mas do que será. Parece que foi ontem, mas afinal é amanhã. Tudo nasce para florir numa eterna primavera. No fim, diremos apenas: não recordo nada em que Tu não estejas.”
O 7MARGENS publica a seguir excertos do capítulo sobre a paz, onde o Papa conta alguns bastidores de iniciativas conhecidas e manifesta-se disponível para mediar conflitos em curso – nomeadamente o da Ucrânia. O subtítulo é da responsabilidade da Redação.
Nós não somos neutros: estamos do lado da paz.
No início de 2022, a teia da terceira guerra mundial em fragmentos alargou‐se a um novo cenário tremendo, transformando‐se cada vez mais em conflito global: pouco depois de ter reconhecido a independência da República Popular de Donetsk e a de Lugansk, os dois Estados autoproclamados na região de Donbass, as forças armadas da Federação Russa invadiram a Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro. A guerra atingiu o coração da Europa e varreu as últimas ilusões acerca do «fim da história» que, vinte e quatro séculos depois de Tucídides, haviam acompanhado a queda do Muro de Berlim. Tal como em 1962, o ano da crise dos mísseis em Cuba, o mundo voltou a refletir‐se no espectro da destruição nuclear, sob a ameaça concreta de artefactos cuja posse deve ser considerada imoral.
Não era tempo para preocupações com protocolos ou formalidades. Ainda que, por norma, o pontífice apenas receba os embaixadores no momento em que apresentam as credenciais, na manhã seguinte à invasão cancelei todas as audiências e dirigi‐me pessoalmente à embaixada russa junto da Santa Sé. Era a primeira vez que um papa o fazia. O joelho não havia deixado de fazer das suas e, por isso, foi um papa claudicante que se apresentou ao embaixador Avdeev para exprimir toda a preocupação. Implorei o fim dos bombardeamentos, augurei o diálogo, propus uma mediação do Vaticano entre as partes, dizendo estar disposto a ir a Moscovo o mais depressa possível, assim que Putin, com quem já me encontrara três vezes no decurso do pontificado, tivesse deixado aberta uma janelinha para negociar. O embaixador ouviu‐me com atenção, mas o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, escrever‐me-ia mais tarde para me dizer, com cortesia institucional, que não era o momento.
Simultaneamente, telefonei ao presidente ucraniano, Zelensky, que depois receberia no Vaticano no ano seguinte e, mais uma vez, em outubro de 2024, para exprimir a minha dor, a minha solidariedade, a minha proximidade com o seu povo.

Cidade de Bucha, na Ucrânia, onde se registaram graves massacres que terão sido cometidos pelos invasores russos. Foto © Rostos da guerra. Exposição de fotografias da guerra da Ucrânia 2023. Houses of the Oireachtas, Irlanda.
Estava e continuo à disposição, como um operário, disposto a fazer tudo o que servir o objetivo da paz; também por isso, única entre todas, a representação diplomática do Vaticano nunca deixou a sua sede na capital ucraniana, nem durante os mais brutais bombardeamentos.
O povo ucraniano não é apenas um povo invadido, é um povo mártir, perseguido já nos tempos de Estaline com um genocídio por fome, o Holodomor, que causou milhões de vítimas. Nestes anos de conflito, a Santa Sé atuou de muitas maneiras para tentar aliviar os novos e enormes sofrimentos. As missões à Ucrânia do cardeal Czerny, na zona fronteiriça com a Hungria, e do cardeal Krajewski, junto à Polónia, foram de imediato a expressão concreta de solidariedade e de empenho. E, igualmente, a viagem de monsenhor Gallagher, Secretário para as Relações com os Estados, e as missões não apenas aos dois países, mas também a Washington e a Pequim, do cardeal Zuppi, que investiu de uma forma particular no regresso a casa das crianças deportadas para a Rússia pelas autoridades de ocupação, para as quais foi criado um mecanismo ad hoc para resolver casos concretos. Eu próprio intervim para facilitar as trocas de prisioneiros entre Moscovo e Kiev, em primeiro lugar, por aqueles feridos ou doentes e, dois anos após o início do conflito, encontrei também o novo embaixador russo junto da Santa Sé, Soltanovsy, na busca constante de uma solução diplomática.
Porém, sei que não basta: todos devemos multiplicar os esforços, a partir das comunidades europeia e internacional, que devem assumir a tarefa eficaz de identificar caminhos para o diálogo, as negociações, a mediação. Sabemos que não é possível obter resultados a qualquer custo, mas devemos também saber como é grande a responsabilidade de todos. Os interesses imperiais, de todos os impérios, não podem, uma vez mais, ser postos à frente das vidas de centenas de milhares de pessoas. Demasiados órfãos, demasiadas viúvas, demasiados deslocados e demasiados escombros: (…) Kiev, Kharkiv, Mariupol, Izjum, Bucha são cidades mártires, mapa de horrendas crueldades cometidas contra civis indefesos, mulheres, crianças, vítimas cujo sangue inocente brada aos céus, implorando: «Basta! Basta desta loucura!» No início dos bombardeamentos a Kharkiv, até o jardim zoológico foi teatro da devastação: (…) Um rapazinho disse ter visto um exemplar de lobo vermelho a revolver um caixote de lixo: fixaram‐se nos olhos, contou, ambos imóveis, ambos perturbados e ambos certos que o mundo havia enlouquecido.

Francisco em março de 2021, em Mossul (Iraque), uma das cidades devastadas pelo Daesh, “A guerra é sempre um caminho sem meta.” Foto: Direitos reservados.
O caminho da paz tem os seus riscos, é certo, mas comporta riscos infinitamente maiores o caminho das armas, a compulsão para repetir uma eterna corrida aos armamentos que contamina a alma e subtrai enormes recursos a utilizar para combater a desnutrição, para garantir tratamentos médicos a todos, para edificar a justiça, em suma, para entrar verdadeiramente na única via que pode evitar a autodestruição da humanidade. Anton Tchékhov dizia que se num romance aparece uma pistola, convém que dispare, ilustrando assim um princípio fundamental em qualquer narração romanesca e teatral. O mesmo acontece na vida, na das sociedades, onde o número de armas de fogo em circulação é proporcional ao dos mortos assassinados, e na dos Estados.
Atualmente, existem 59 guerras em curso no mundo: conflitos declarados entre nações ou grupos organizados, étnicos, sociais. Algumas são menos mediáticas, mas nem por isso menos terríveis: penso em Kivu, no Iémen, em Myanmar com os Rohingya, na região de Karabakh no Cáucaso, na de Tigray na Etiópia. No total, dizem respeito diretamente a quase um terço das nações do planeta, e a um número muito maior de maneira indireta. Por vezes, são mesmo chamadas hipocritamente «operações de paz».
É assim há muito, há demasiado tempo.
Esta consideração deveria bastar para desmascarar a insensatez da guerra como instrumento de resolução dos problemas: é apenas uma loucura que enriquece os mercadores de morte e que os inocentes pagam. Se não se fabricassem armas durante um ano, a fome no mundo acabaria por completo, um só dia sem despesas militares salvaria 34 milhões de pessoas, mas, em vez disso, escolhe‐se aumentar as despesas militares tal como nunca acontecera… e fabricar a fome.
Sou suficientemente velho para ter visto, com os meus próprios olhos, que a guerra é sempre um caminho sem meta: não abre perspetivas, não resolve nada, gangrena tudo, e deixa o mundo pior do que o encontrou. É uma irracionalidade criminosa a que hoje mais do que nunca é necessário contrapor o aviso profético do Papa João XXIII na encíclica Pacem in Terris: à luz da terrificante força destrutiva das armas modernas e de dezenas de milhares de bombas nucleares, agora quarenta vezes mais destrutivas do que as de Hiroshima e Nagasaki, é ainda mais evidente que as relações entre os Estados devem ser reguladas, não pela força armada, mas segundo os princípios da razão reta, isto é, da verdade, da justiça e de uma vigorosa cooperação.
No entanto, face a esta manifesta irracionalidade, a palavra «paz» parece ter‐se tornado nestes tempos ainda mais incómoda, por vezes, proibida, e os artesãos da paz e da justiça olhados mesmo com desconfiança, atacados quase como se fossem cúmplices do «inimigo» por uma comunicação que mostra deste modo que nem consegue fugir com o pensamento à «lógica ilógica» e perversa da guerra, e que talvez gostasse que a Igreja utilizasse a linguagem desta ou daquela política, e não a de Jesus ou fazer de um papa o capelão militar do Ocidente, em vez do pastor da Igreja universal.

Francisco enquanto seminarista, em Villa Devoto. Foto: Direitos reservados.
Por vezes, nada parece despertar mais escândalo do que a paz…
Não obstante, não podemos rendermo‐nos, não podemos cansarmo‐nos de lançar sementes de reconciliação. Não podemos ceder nem à retórica nem à psicose belicista, pois o destino da humanidade não pode ser o de construir reinos armados até aos dentes que se enfrentam no medo.
É verdade, muitas vezes, a Igreja é vox clamantis in deserto (Marcos 1,3), uma voz que clama no deserto: basta pensar nos últimos trinta anos, nos apelos não atendidos de João Paulo II face à iminência da guerra na Jugoslávia ou dos dois conflitos no Golfo, na sua profecia então não ouvida e que depois se revelou dramaticamente verdadeira, demasiado tarde reconhecida por todos. Após meio milhão de mortos inúteis, no último caso. Porém, devemos cultivar a certeza de que cada semente de paz dará o seu fruto. (…)
Uma nova barbárie começada com o atentado de 7 de outubro de 2013, quando as milícias do Hamas atravessaram as barreiras que dividem a Faixa de Gaza de Israel e mataram militares e civis israelitas. Mais de mil pessoas foram mortas, e da maneira mais diabólica e brutal, nas suas casas ou quando tentavam escapar, e muitas outras foram feitas reféns, entre as quais, mulheres, raparigas, rapazes e crianças. Perdi também amigos argentinos naquela carnificina, uma dupla dor, pessoas que conhecia há anos e que viviam num kibutz na fronteira com Gaza.
E depois, àquele desgosto, àquela barbárie, juntou‐se uma outra, enorme, causada pelos raides israelitas: dezenas de milhares de mortos inocentes, em grande parte, mulheres e crianças, centenas de milhares de deslocados, de casas destruídas, de pessoas a um passo da penúria.
Estou desde sempre em contacto constante com Gaza e com a igreja da Sagrada Família, de que é pároco o padre Gabriel Romanelli, também ele argentino.
Até aquele recinto paroquial, que alberga famílias e pessoas doentes, se tornou teatro de morte. Uma mãe, a senhora Nadha Khalil Anton, e a sua filha Samar Kamal, que era a cozinheira da casa das crianças com deficiência assistidas pelas irmãs de Madre Teresa, foram mortas a tiro por um atirador do exército israelita quando se dirigiam para o convento das freiras, uma morta quando procurava salvar a outra. Outros também foram atingidos a sangue‐frio próximo da paróquia, uma pequena comunidade cristã que chora já a perda de mais de vinte pessoas. Também isto é terrorismo. A guerra que mata civis indefesos e desarmados, até voluntários da Cáritas empenhados na distribuição de ajuda humanitária, que martiriza sem trégua a população civil, que mata de fome, produz um idêntico e insensato terror.
A partir de Gaza, o conflito alargou‐se ainda mais, expandindo‐se da Palestina para a Síria, para o Irão, para o Líbano, acrescentando vítimas a vítimas e refugiados a refugiados.
Centenas de milhares. Na vergonhosa incapacidade da comunidade internacional e dos países mais poderosos de porem fim a este massacre, a onda de ódio transformou‐se numa onda gigantesca de violência. O sangue que corre aumenta o medo e a raiva e, ao mesmo tempo, o desejo de vingança, numa espiral criminosa que se alimenta em vórtices, mordendo o próprio futuro com as suas mandíbulas. Na cidade de Tiro, a poucas dezenas de quilómetros de Beirute, o convento franciscano da Custódia da Terra Santa tornou‐se um centro de refugiados, sem diferenças de cor ou religião, um número que já não se conseguia contar. Pouco antes de o abandonar, juntamente com a caravana de refugiados, levando consigo as relíquias e o Santíssimo Sacramento para a capital, o pároco, padre Toufic Bou Merhi, lançou uma comovente e dramática invocação durante a missa, dirigindo‐se diretamente às armas: «Caríssima bomba, por favor, deixa‐nos em paz. Querido míssil, não expludas. Não obedeças à mão do ódio. Exorto‐vos, pois outros ouvidos foram tapados, e os corações dos responsáveis endureceram, e a brutalidade no trato entre as pessoas espalhou‐se, por isso ouçam‐me, eu vos imploro. Chamam‐vos bombas inteligentes, sejam mais inteligentes do que aqueles que vos estão a usar.» Não sobrou ninguém para matar, disse ele. Famílias exterminadas. Em Sila, uma menina de seis anos ficou sem pai, sem mãe, sem a irmã de um ano e meio, sem avô, sem avó, sem tio e família. Na véspera daquela homilia, um míssil destruiu nove casas a cinquenta metros do convento. As pedras caíram no pátio onde estavam os refugiados. Terror, gritos, choros, medo misturaram‐se com o sangue dos feridos. (…)
Há algum tempo mostraram‐me um desenho, que retratava o eterno conflito afegão. Mostrava o perfil de um menino mutilado, com uma linha pontilhada em vez do rosto. Uma inscrição dizia: «Se quereis saber o que é a guerra, colocai aqui a fotografia do vosso filho.» É isto a guerra, o terror, que não é captado pelas câmaras dos drones, mas nas enfermarias dos hospitais de campanha: em Cabul como em Kiev, num kibbutz como em Gaza. Pensar em todas as crianças como nos próprios filhos é o antídoto para a desumanização que transforma todos os justos apelos de existência num conflito cada vez mais sangrento para a inexistência do outro.
Nenhuma salvação poderá ser construída com palavras e gestos de vingança; a vida apenas poderá ser construída com palavras e gestos de justiça, que renunciem à humilhação do adversário.

Crianças da paróquia católica de Gaza agradecem ao Papa a sua proximidade. Imagem reproduzida a partir de vídeo da agência SIR
Encontrei mais de uma vez no Vaticano os familiares dos reféns israelitas e os familiares das vítimas de Gaza, e vi o mesmo desejo de paz, de serenidade e de justiça.
Encontrei os pais de dois adolescentes, um israelita e o outro palestiniano, que perderam as suas filhas por causa da guerra, uma de catorze anos, vítima de um atentado, e a outra, de dez, morta por um soldado à saída da escola, e vi uma idêntica dor e uma mesma escolha: enterrar o ódio para procurar uma outra via que não tornasse inútil o seu luto. Aqueles dois homens, aqueles dois pais, que passaram pela mesma crucificação, tornaram‐se amigos, testemunhas de que um outro mundo é possível; melhor, que é o único possível.
Para a Terra Santa, o caminho a percorrer apenas pode ser o traçado pelos acordos de Oslo de 1993, que permaneceram letra‐morta após o assassinato do primeiro‐ministro Yitzhak Rabin por parte de um extremista israelita, aquela solução sábia dos dois Estados bem delimitados e de Jerusalém com um estatuto especial. Qualquer solução edificada sobre a vingança e a violência, pelo contrário, seja onde for, nunca poderá ser paz, e não fará senão espalhar novas sementes de ódio e ressentimento, geração após geração, numa cadeia infinita de prepotências.
Em junho de 2014, no segundo ano do meu pontificado, juntamente com o então presidente israelita Shimon Peres, o palestiniano Mahmud Abbas e o patriarca Bartolomeo, plantámos nos jardins do Vaticano uma jovem oliveira, para invocar a paz no Médio Oriente.
Um pouco antes, estivera como peregrino na Terra Santa. Em Jerusalém, rezara diante do Muro das Lamentações e nos seus interstícios, tal como é costume, coloquei uma pequena folha, na qual escrevera em castelhano os versos do Pai Nosso: perdona nuestras ofensas, como también nosotros perdonamos a los que nos ofenden… perdoai‐nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido… Cada um de nós deve perdoar as ofensas de outrem, apenas assim seremos perdoados do mal. Depois, durante o trajeto para Belém, cruzei‐me com outro muro, aquele que separa israelitas e palestinianos durante centenas de quilómetros. (…) Foi em Belém que exprimi o desejo de que os líderes dos dois povos se encontrassem para realizarem um gesto significativo e histórico de diálogo e de paz, oferecendo como local de oração a minha casa no Vaticano.
O sonho de Belém completou dez anos. Em junho de 2024, quis comemorar aquele encontro convidando para os jardins todo o corpo diplomático e, em particular, os embaixadores de Israel e da Palestina, bem como o rabino e o secretário‐geral da mesquita de Roma: aquele arbusto já se tornou uma oliveira com mais de cinco metros de altura, e embora as armas não se tenham calado, embora continuemos a ver morrer tantos inocentes diante dos nossos olhos, e do modo mais cruel, milhares e milhares de palestinianos e israelitas de boa vontade não desistem de esperar a chegada de um novo dia. Não devemos render‐nos, não devemos desistir de reclamar e construir relações de fraternidade, que antecipem a alvorada de um mundo em que todos os povos destruirão as suas espadas fazendo delas arados; e, ao mesmo tempo, hoje ainda mais do que ontem, devemos saber que a paz tem necessidade de corações transformados pelo amor de Deus, que desfaz os egoísmos e destrói os preconceitos. Tal como já proclamou João Paulo II, não há paz sem justiça, mas não há justiça sem perdão.

O então arcebispo de Buenos Aires (Argentina), Jorge Bergoglio, no metro da cidade: “A guerra nunca é «inevitável» e a paz é sempre possível.” Foto: Direitos reservados.
O perdão não é traição e não é fraqueza, pelo contrário. Tal como disse no meu discurso diante do Congresso dos Estados Unidos, em setembro de 2015, imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é a melhor maneira de tomar o seu lugar. Por sua vez, a nossa resposta deve ser de esperança e purificação, de paz e de justiça. (…)
Substituamos a cobardia das armas pela coragem da reconciliação.
A guerra tem um nome feminino, mas não tem um rosto de mulher: precisamos do olhar das mães; precisamos da sua coragem. E precisamos de arquitetos que encarnem esta consciência e esta visão. Pois não podemos permitir que o novo papa precise de regar aquela oliveira por mais dez anos.
Aos homens e às mulheres de todas as regiões do mundo e, sobretudo, aos jovens, digo: não acreditem em quem diz que nada pode mudar ou que lutar pela paz é uma procura de ingénuos, de «boas almas». Não cedei a quem vos quer fazer acreditar que é lógico conduzir uma existência contra os outros ou sem os outros, contra os povos ou sem os povos. Aqueles que o defendem, fingem‐se fortes, mas são fracos. Talvez se finjam mesmo sábios, mas são loucos. (…)
Nós não confundimos agressor e agredido, e não negamos o direito à defesa: afirmamos com convicção que a guerra nunca é «inevitável» e que a paz é sempre possível. (…)
Nós não somos neutros: estamos do lado da paz.
Sabemos que a paz nunca será fruto dos muros, das armas apontadas. Sabemos que uma paz verdadeira e duradoura é uma consequência de uma economia que não mata, que não gera morte, que cultiva a justiça, que não se rende aos paradigmas tecnocráticos e à cultura do lucro a todo o custo. (…)
Oponhamos‐nos aos ladrões do futuro com a crença de que o único futuro possível pertence a mulheres e homens solidários e a povos irmãos, e que a única autoridade legítima é a que representa um serviço a esta causa, pois a autoridade que não é serviço é ditadura.
A guerra não é apenas o palco das mentiras, dado que as mentiras a precedem e a acompanham e a verdade é a sua primeira vítima: a guerra é, por si só, uma mentira. Não é por acaso que num escrito seu com o título exemplar, Arrependei‐vos!, o escritor Lev Tolstói relaciona‐a com «o mal mais assustador do mundo, a hipocrisia. Não foi em vão que Cristo se enfureceu uma única vez, e essa vez foi precisamente pela hipocrisia dos fariseus».
A verdade é que não pode haver futuro senão no realismo, na razoabilidade, na concretude dos que semeiam paz e esperança.
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