
Filipina no Jubileu da Comunicação

“Há tanta gente nesta sala. Imaginem se todos trabalhássemos juntos. Talvez consigamos conter a maré e curar o nosso mundo.” A última frase da intervenção da jornalista filipina e Nobel da Paz em 2021 (a par do russo Dmitry Muratov), Maria Ressa, no sábado, dia 25, no encontro jubilar do Papa com os jornalistas e os profissionais da comunicação, resumia o tom dos seus apelos, na crítica veemente às grandes empresas tecnológicas por aquilo que estão a fazer na destruição da democracia, da paz e das relações humanas e na promoção do ódio, do aumento das desigualdades e dos autoritarismos.
Maria Ressa, fundadora do Rappler, recordou que antes dela, o último jornalista a receber o Nobel da Paz foi o alemão Carl von Ossietzky, que “não pôde recebê-lo porque estava a definhar numa prisão nazi”. O que lhe serviu para comparar com os tempos que estamos a viver, por causa do poder cada vez mais incontroláveis das grandes empresas tecnológicas e dos que vivem à sua sombra.
Momentos depois, no discurso que deixou escrito, o Papa Francisco concordava que o Jubileu 2025 da Igreja Católica se celebra num “momento difícil da história humana, com o mundo ainda ferido por guerras e violência, pelo derramamento de tanto sangue inocente”, destacando ainda as referências de Maria Ressa à importância da coragem. [O texto do Papa e o registo vídeo de toda a sessão podem ser lidos e vistos na página do Vaticano na internet. Sobre a sessão, pode ser lida esta outra análise no 7MARGENS.]
Pela sua importância e pelos apelos que lança à capacidade de agir de cada pessoa, o 7MARGENS publica a seguir, na íntegra o texto de Maria Ressa, depois de obtida autorização do Rappler.
Plataformas que exploram as nossas vulnerabilidades mais profundas

O Papa no sábado, 25, no encontro do Jubileu do mundo da comunicação. Foto © Ricardo Perna/Diocese de Setúbal.
É uma profunda honra estar perante vós hoje, neste espaço sagrado, ao darmos início a este Jubileu – um tempo de graça, de reflexão e de novo compromisso com os valores que nos unem como uma comunidade global.
Vem mesmo em tempo oportuno, porque estamos a viver uma profunda transformação do nosso mundo. A última vez que algo assim aconteceu, quando as novas tecnologias permitiram a ascensão do fascismo, foi há 80 anos. Foi nessa altura a última vez que um jornalista foi nomeado para o Prémio Nobel da Paz, só que Carl von Ossietzky não pôde recebê-lo porque estava a definhar numa prisão nazi. Ao longo de muitos anos, tenho vindo a lançar o alarme: tal como em Hiroshima, uma bomba atómica explodiu no nosso ecossistema informático.
Em busca de poder e dinheiro, a tecnologia permitiu uma manipulação insidiosa ao nível celular da democracia, ou seja, ao nível de cada um de nós – os eleitores – microdireccionando o medo, a raiva e o ódio; semeando metanarrativas que destruíram a confiança. Ela criou aquilo a que o responsável máximo do sistema público de saúde dos EUA chamou uma epidemia de solidão, virando vizinho contra vizinho e recompensando a regra da multidão – recompensando o pior de nós enquanto pessoas.
Os jornalistas foram os primeiros a ser atacados: se queres ter poder, destrói a nossa credibilidade. Sei isto em primeira mão, porque o meu governo atacou-me com uma média de 90 mensagens de ódio por hora. Como um fertilizante, #ArrestMariaRessa foi tendência nas redes sociais dois anos antes de eu ser efetivamente presa.
O que parece impossível, torna-se possível com a repetição.
Fui presa e paguei a primeira fiança no Dia dos Namorados de 2019. Em pouco mais de um ano, o meu governo apresentou dez mandados de captura contra mim. Eu não sabia o que ia acontecer, mas o Rappler e eu fizemos o que era correto. E agora, quase uma década depois, essas dez acusações criminais estão reduzidas a duas. Mas até hoje, só por fazer o meu trabalho como jornalista, perdi alguma liberdade – tenho de pedir autorização ao Supremo Tribunal de Justiça das Filipinas para viajar. O que é triste? O mesmo estar agora a acontecer mais rapidamente noutras partes do mundo.
Este Jubileu chega numa altura em que o mundo está de pernas para o ar: quando o que é certo é errado; e o que é errado é certo. Lembro-me de um velho desenho animado do tempo em que eu estava a crescer e a aprender a tomar decisões de consciência. À nossa direita, temos o diabo a incitar-nos: Faz isso. Faz. Faz isso! À esquerda, está um anjo a lembrar a regra de ouro – Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti. Dizendo-te para não seres egoísta. Para partilhares. Para lutares contra os teus piores instintos.
Bem, aquilo que as redes sociais fizeram foi tirar o anjo do nosso ombro, fazer crescer o diabo e ligá-lo diretamente ao nosso sistema nervoso.
Não são tecnologias neutras

As tecnologias “transformam em dinheiro a nossa indignação e o nosso ódio; amplificam as nossas divisões; e corroem a nossa capacidade de pensar com empatia”.
As Big Tech transformaram as redes sociais de uma ferramenta de ligação numa arma de engenharia comportamental de massa. Estas plataformas não são tecnologias neutras; são sistemas sofisticados concebidos para explorar as nossas vulnerabilidades psicológicas mais profundas.
Eles transformam em dinheiro a nossa indignação e o nosso ódio; amplificam as nossas divisões; e corroem sistematicamente a nossa capacidade de pensar com nuances e empatia.
Em 2018, um estudo do MIT mostrou que as mentiras se espalham seis vezes mais rápido nas redes sociais. Se contarmos uma mentira um milhão de vezes, ela torna-se um facto. Se se fizer as pessoas acreditarem que as mentiras são factos, então pode-se controlá-las.
Sem factos, não há verdade. Sem verdade, não se pode ter confiança. Sem estes três, não temos uma realidade partilhada, muito menos resolver problemas existenciais como as alterações climáticas. Não podemos ter jornalismo e não podemos ter democracia.
O modelo de negócio das Big Tech – o capitalismo de vigilância – assenta numa traição fundamental da dignidade humana, onde a privacidade dos dados se tornou um mito e a Inteligência Artificial e os algoritmos nos clonaram e manipularam:
– Criando câmaras de eco que exacerbam os preconceitos existentes;
– Dando prioridade ao conflito em detrimento da compreensão;
– Transformando em dinheiro a atenção humana em detrimento da coesão social.
Isto não é um acidente. Trata-se de um projeto deliberado, uma arquitetura para o lucro que traz centenas de biliões de dólares por ano a estas empresas.
É claro que o que acontece nas redes sociais não fica nas redes sociais.
Só existe um “tu” – que vive tanto no mundo virtual como no mundo real.
A grande tecnologia explorou as vulnerabilidades da nossa biologia, mudou a forma como nos sentimos, a forma como vemos o mundo – o que mudou a nossa forma de atuar. Será que ainda temos capacidade de ação individual?
Podemos ver a tendência: no ano passado, o V-Dem afirmou que 71 por cento do mundo está sob um regime autoritário. Estamos a eleger democraticamente líderes iliberais. Afinal, como é que podemos ter integridade nas eleições se não tivermos integridade dos factos? É como se estivéssemos em cima de madeira infestada de térmitas, que pode ruir a qualquer momento.
Algo mudou na Roménia – e na Venezuela, em Moçambique, Geórgia…

Protestos em Moçambique após o anúncio oficial dos resultados das eleições de Outubro de 2024: a contestação à manipulação está a acontecer em vários países. Foto © Amnistia Internacional
Mas algo mudou no ano passado. Em dezembro, a Roménia tornou-se o primeiro país a anular uma eleição devido à manipulação russa das redes sociais. Imagine-se se o Reino Unido ou os EUA tivessem feito o mesmo em 2016!
Os protestos eleitorais estão a acontecer em todo o mundo. Da Venezuela a Moçambique, à Geórgia, onde os protestos em grande escala começaram em abril, mas se tornaram diários a partir de dezembro – e hoje é o 60º dia – com jornalistas e ativistas espancados e presos. Os jornalistas levaram para esses protestos o meu livro cujo título é Como Enfrentar Um Ditador.
A jornalista de investigação Mzia Amaglobeli está hoje no seu 14º dia de dia de greve de fome na prisão.
Há anos que mostro dados de diferentes países do mundo em que a tecnologia é o fósforo que incendiou o mundo. “Mexam-se depressa, partam coisas”, disse Mark Zuckerberg – e as Big Tech
rebentaram a democracia. E a situação vai piorar depois de ele ter anunciado que o Facebook está a desistir dos factos. Não é uma questão de liberdade de expressão, é uma questão de segurança.
Quantas pessoas mais terão de morrer? A ONU e a própria equipa da Meta foram de forma independente a Myanmar e descobriram que o Facebook potenciou o genocídio em 2018. No entanto, ninguém foi responsabilizado.
A violência online é violência no mundo real. Com as duas a alimentarem-se uma à outra. De Myanmar à Ucrânia, passando por Gaza, Sudão, Zimbabué, Afeganistão, Etiópia e muitos outros campos de batalha esquecidos. Estas guerras são travadas não apenas com mísseis e tanques, mas com algoritmos, desinformação e a destruição sistemática da verdade e das nossas comunidades de confiança.
A guerra de informação e o jogo de poder geopolítico estão a explorar a conceção destas plataformas. Lembrem-se, o objetivo não é fazer-vos acreditar numa coisa; é fazer-vos duvidar de tudo de modo a deixar-vos paralisados.
Globalmente, há duas linhas principais de fratura da sociedade abertas, independentemente do país ou da cultura. São o género e a raça – e os ataques são muitas vezes alimentados pela religião. O sexismo que se transforma em misoginia; e o racismo, que encontra o seu caminho em constituições como a da Hungria, onde se designa teoria da substituição branca. Ouvimo-lo nas notícias como sendo imigração ou inflação, mas, se formos mais fundo, veremos o género e a raça.
Para ter conversas reais sem manipulação

Precisamos de construir um conjunto de tecnologias públicas para o mundo virtual, onde as pessoas reais possam ter conversas reais sem serem manipuladas por poder e dinheiro. Nós, no Rappler, começámos a construir isso e lançámos uma aplicação de chat há pouco mais de um ano.
A nossa visão é uma federação de organizações noticiosas mundiais. O meu colega Paterno Esmaquel falar-vos-á mais sobre isso. Vou colocar a ligação para que possam experimentar no X, Facebook e BlueSky.
Porque estamos no Vaticano, quero salientar três coisas: primeira, a tecnologia recompensa a mentira. Como eu disse ao Papa Francisco, isso é contra os Dez Mandamentos; segunda: os homens que controlam esta tecnologia transformadora detêm um poder semelhante ao de um deus, mas não são Deus; são apenas homens, cuja arrogância, falta de sabedoria e humildade está a conduzir o mundo por um caminho escuro. Pelas suas próprias definições e palavras, o seu poder incontrolado e irresponsável assemelha-se cada vez mais a um culto.
É por isso que a religião, a fé, se tornam hoje mais importantes. Em Como enfrentar um ditador, escrevo sobre como a regra de ouro – “Faz aos outros como gostarias que te fizessem a ti” – me tem guiado ao longo da minha vida.
Ajudou-me a definir a CORAGEM num mundo cada vez mais moldado por mentiras: a coragem de falar quando o silêncio é mais seguro; a coragem de construir pontes quando os muros parecem mais fáceis; e a coragem de defender a verdade mesmo quando parece que o mundo inteiro está contra nós.
Gosto da palavra sul-africana UBUNTU – “Eu sou porque nós somos” – um antídoto para muitos dos nossos problemas actuais. É uma verdade universal que as nossas comunidades de fé incorporam. A dor de um é a dor de todos.
Quando as Big Tech recompensam o pior do quem somos, o UBUNTU ensina-nos que os nossos destinos estão interligados; que a luta pela verdade, justiça e paz não é a batalha de outra pessoa; É NOSSA.
Quatro sugestões para o agir individual

Então, o que podes fazer TU?
Tenho quatro sugestões:
- Colaborar, colaborar, colaborar – construir e reforçar a confiança agora, para fechar as linhas de fratura da sociedade que as operações de informação tentarão abrir, colocando-nos uns contra os outros;
- Dizer a verdade com clareza moral – o silêncio perante a injustiça é cumplicidade. Quer se trate de racismo sistémico, de desigualdade económica ou a erosão das normas democráticas, as pessoas de fé têm de reclamar a sua voz profética. Exigir transparência e responsabilidade daqueles que controlam os nossos ecossistemas de informação pública – dos governos às grandes tecnologias e aos media;
- Proteger os mais vulneráveis – Apoiar jornalistas, defensores dos direitos humanos e ativistas que arriscam as suas vidas. Lembram-se da citação de Martin Neimoller, da Alemanha? Aqui está a nossa versão das Filipinas – publicada pelo nosso maior jornal após a minha primeira detenção: “Primeiro vieram buscar os jornalistas. Não sabemos o que aconteceu a seguir”.
As vossas redes podem ser escudos poderosos para as comunidades marginalizadas. Apoiem os imigrantes, as minorias religiosas, os LGBTQ+ e outros que enfrentam discriminação. A nossa vigilância coletiva pode impedir a normalização do ódio.
- Reconhecei o vosso poder – A construção da paz não está reservada aos heróis; é o trabalho coletivo de pessoas que se recusam a aceitar e viver mentiras. O Rappler não teria sobrevivido sem a ajuda da nossa comunidade, que me recorda sempre a bondade da natureza humana. Vocês são poderosos e podem fazer parte de uma onda de mudança para o bem. Isso é alimentado pelo amor.
Permitam-me que as repita novamente: Colaborar, colaborar, colaborar; Falar a verdade com clareza moral; proteger os mais vulneráveis; e reconhecer o poder próprio.
Mesmo nos piores momentos, a esperança não é passiva; é ativa, incansável e estratégica. As nossas tradições de fé carregam séculos de resiliência; nós precisamos de partilhar essas histórias de transformação.
Finalmente…
Há uma citação de T.S. Eliot que adoro sobre “o momento presente do passado”.
É a ideia de que o último romance que leste é afetado pelo facto de teres lido Shakespeare, mas a tua compreensão e apreciação de Shakespeare serão afectadas pelo último romance que leste.
Neste momento presente do nosso passado partilhado, temos uma escolha – e ela criará o nosso futuro do mesmo modo que mudará a forma como olhamos para o nosso passado.
Podemos permitir que as linhas de fratura da nossa sociedade se abram. Ou podemos trabalhar para curar as divisões crescentes.
Porque é agora. Este momento é importante. O que escolheres fazer é importante.
Há tanta gente nesta sala. Imaginem se todos trabalhássemos juntos. Talvez consigamos conter a maré e curar o nosso mundo.
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