Na recente Exortação Apostólica “Laudate Deum”, Louvai a Deus, publicada em 4 de outubro, o Papa Francisco tece vários considerandos sobre as alterações climáticas, não deixando de ressalvar que quando o ser humano pretende tomar o lugar de Deus se torna o pior perigo para a natureza e para a humanidade. Naturalmente que na origem destas alterações estará o novo paradigma tecnocrático, a ampla ambição do ser humano, que tudo quer, tudo pode e tudo faz.
Infelizmente, a crise climática não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências económicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possíveis.
“A decadência ética do poder real é disfarçada pelo marketing e pela informação falsa, mecanismos úteis nas mãos de quem tem maiores recursos para influenciar a opinião pública através deles”. Há “um domínio daqueles que nasceram com melhores condições. “Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornámos altamente perigosos.
O Papa reitera que “o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada e ambição sem limites”. Estamos incluídos na natureza, e isso exclui a ideia de que o ser humano é um estranho, um factor externo com possibilidade de danificar e alterar o meio ambiente.
Nos últimos anos, pudemos confirmar este diagnóstico, assistindo simultaneamente a um novo avanço de tal paradigma. A inteligência artificial e os recentes progressos tecnológicos baseiam-se na ideia dum ser humano sem limites, cujas capacidades e possibilidades se poderiam alargar ao infinito graças à tecnologia. Assim, o paradigma tecnocrático alimenta-se monstruosamente de si próprio.
Os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas o problema maior é a ideologia que está na base duma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades.
Nem todo o aumento de poder é um progresso para a humanidade. Basta pensar nas tecnologias «portentosas» que foram utilizadas para dizimar populações, lançar bombas atómicas, aniquilar grupos étnicos. Houve momentos da história em que a admiração pelo progresso não nos permitiu ver o horror dos seus efeitos. Mas este risco está sempre presente, porque «o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência (…), ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar.
Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si. Não é de estranhar que um poder tamanho em tais mãos seja capaz de destruir a vida, já que a matriz de pensamento própria do paradigma tecnocrático nos cega, não nos permitindo ver este gravíssimo problema da humanidade atual.
Tal situação não tem a ver apenas com a física ou a biologia, mas com a economia e o nosso modo de a conceber. A lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade. «Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação». Assim, acabamos com a ideia dum ser humano autónomo, omnipotente e ilimitado, e repensamo-nos a nós próprios para nos compreendermos de maneira mais humilde e mais rica.
A cosmovisão judaico-cristã defende o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um «antropocentrismo situado», ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas. De facto «nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde». «O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre». O mundo canta um Amor infinito; como não cuidar dele? A “responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo».
Os esforços das famílias para poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata estão a criar uma nova cultura. O simples facto de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos. Note-se, pois, que, mesmo se isto não produzir imediatamente um efeito muito relevante do ponto de vista quantitativo, contribui para realizar grandes processos de transformação que agem a partir do nível profundo da sociedade.
«Laudate Deum», título desta carta sobre as alterações climáticas pode parecer distante da fé, mas o Papa recorda que está no seu centro, na medida em que nos encoraja a cuidar dos irmãos e a guardar a Criação, seguindo o mandato original do Génesis: «Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa». D’Ele é «a terra e tudo o que nela existe» ( Dt 10, 14).
Nós, como crentes, devemos admirar e ser gratos pela Criação que recebemos como dom, cuidar dela com responsabilidade e transmiti-la às gerações futuras, porque se "o mundo canta um Amor infinito, como não cuidar dele?" (Texto baseado na Carta Apostólica Laudate Deum).
Maria Susana Mexia
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