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quinta-feira, 18 de julho de 2024

Conto: O Zé-Ninguém

Ninguém soube jamais o teor da última conversa entre sogro e genro, mas o que todos sabiam e viam era a estreita amizade que os unia, sobretudo naqueles últimos tempos de vida do Sr. Gil.

Viúvo, com 90 anos, quase cego devido à diabetes, estava agora num lar da sua terra. O genro Zé, apesar dos seus 70 e tal anos e dificuldades de mobilidade, visitava-o todos os dias e como um bom filho, fazia-lhe a barba, ajudava-o na higiene, lia-lhe jornais e revistas, dava-lhe comida na boca, e depois, regressava à sua barbearia, onde cada cliente era também um amigo. Chamavam-lhe até ‘o Zé Bonzão’!

Porém, a vida deste Zé nunca tinha sido fácil… sobretudo desde que regressara gravemente ferido da guerra na Guiné nos finais dos anos 60. Sofrera amputação de uma perna e estivera dois anos internado no hospital Militar, no Serviço 6 de Recuperação de Mutilados, na Rua Artilharia 1 em Lisboa. De origens modestas, nascido lá longe, raras visitas recebia, pois os pais viviam da agricultura em Trás-os-Montes e não tinham posses para se deslocarem a Lisboa. No hospital todos gostavam dele pela sua simpatia e bom feitio… era um brincalhão, apesar do sofrimento… as próprias senhoras da Cruz Vermelha, sempre tão distintas e elegantes nas suas fardas, tinham uma predileção especial pelo Zé, quando semanalmente iam de cama em cama, conversar, distribuir alguma lembrança, bolachas, ou guloseimas, e escrever ou ler cartas das famílias. O Zé era de facto, de uma simpatia irresistível!

Já depois da amputação, o Zé conhecera ali no hospital uma jovem fisioterapeuta em estágio, Luisinha, e ambos tinham descoberto que as suas terras de origem eram próximas. Aos poucos, entre os dois nascera uma grande simpatia que ao longo dos meses se transformara em amor…

Quando finalmente, já com uma nova prótese, o Zé fora reencaminhado para um outro hospital para reabilitação, Luizinha conseguira também mudar de local de trabalho para ficar junto dele e o poder acompanhar. Entretanto, ela nunca falara no Zé aos pais, nem mesmo quando, uma vez por mês, ia a casa visita-los lá na terra.

Certo dia porém, Luizinha encheu-se de coragem, contou aos pais o que se passava e falou-lhes nos seus planos de casar com o Zé, a quem queria trazer para o apresentar, dizendo-lhes que iriam gostar muito dele… mas a reação do pai foi terrível…

‘- …o quê? Estás doida? Vais ficar amarrada a um Zé-Ninguém, sem perna, sem trabalho, sem eira nem beira??? Não contes com o meu sim para tamanha loucura! Escusas de o trazer cá…’

Luizinha chorou, chorou, chorou, a mãe tentou intervir em favor da filha, mas o Sr. Gil saiu porta fora a caminho da sua velha mercearia, agora transformada no melhor supermercado da terra.

O Sr. Gil tinha subido a pulso na vida… nascido numa aldeia de Trás-os-Montes, de uma família numerosa e pobre, viera trabalhar como marçano para o Porto, aí fizera recados, carregando com tudo o que fosse necessário a troco de dormida e alguma comida… fizera-se um homem às direitas, mas com o tempo o coração endurecera, estava sempre a deitar contas à vida, pensava muito no dinheiro e sentia-se muito cheio de si, orgulhoso por tudo o que conseguira alcançar… ao casar, já entrado nos anos, sempre pensara que havia de garantir aos filhos um futuro mais fácil e mais risonho… mas só tivera aquela filha, a Luizinha, que fora para Lisboa estudar fisioterapia - um amor de rapariga, brilhante aluna, o seu ‘ai- Jesus’ e o seu orgulho!

Contudo, ver agora a sua filha querer sacrificar toda uma vida para casar com um Zé Ninguém, ainda por cima sem uma perna… um ‘estropiado’… custava-lhe horrores e nem queria pensar nisso!

… mas o tempo foi passando, o Zé foi bem tratado e bem cuidado nos hospitais, granjeara simpatias em todo o lado, tinha força de vontade e um optimismo inato, nunca desistira de fazer uma vida o mais normal possível, ter alguma autonomia, uma profissão, uma família e sentir-se útil à sociedade… e assim, em pouco tempo aprendeu a arte de barbeiro; tinha jeito, gosto e simpatia, arranjou trabalho e com um banco giratório que subia e descia à altura da cadeira de cada cliente, num instante, fazia-lhes barba e cabelo, e os clientes gostavam dele e passavam palavra a outros…

Em breve, aqueles dois jovens conseguiram juntar um pequeno pé-de-meia e concretizar o seu sonho, e casaram mesmo, apesar dos obstáculos!

Os anos passaram, o Sr. Gil lá se conformou, e aos poucos começou a admirar o genro, muito trabalhador, sempre com boa cara, bons modos, sem guardar ressentimentos, muito amigo da sua filha Luizinha e com um coração mais atento aos problemas dos outros do que às suas próprias necessidades! E além disso… nunca lhe pedira um tostão… o que para ele era muito importante!

Quando a sogra morrera, o Zé e a Luizinha tinham levado o Sr. Gil para casa deles e ele ali ficou durante um ano, sem que nada lhe faltasse, mas depois quisera deixar o casal sozinho e decidira ir viver num lar novo, mesmo ao lado do seu supermercado…

… Naquela manhã chuvosa de inverno, telefonaram do lar, à filha e ao genro, dizendo que o Sr. Gil passara mal a noite e só chamava pelo Zé e pela Luizinha. Rapidamente entraram no carro e puseram- se a caminho.

À chegada, a enfermeira quis prepará-los para a despedida… o Sr. Gil, logo que os sentiu por perto, e respirando a custo, apertou-lhes as mãos, pedindo para ficar a sós com o Zé… Luizinha afastou-se um pouco, percebeu que o pai falava ao ouvido do Zé, e quando voltou para junto deles, ainda viu o pai tirar um envelope debaixo da almofada e entrega-lo ao Zé… depois, abraçou-o com um derradeiro esforço, suspirou e partiu nos braços do genro…

O Zé chorava, segurando o envelope onde com letras garrafais e tortas de alguém quase cego, estava escrito: ’Para o meu querido filho Zé Bonzão, do Pai amigo’.

Fátima Fonseca




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