Análise
Muitos aguardavam que o Papa Francisco fizesse uma reforma da Cúria e, a seguir, introduzisse mudanças que entende imprescindíveis para a vida da Igreja Católica. Ele respondeu, convocando um Sínodo para escutar todos os batizados, sejam eles leigos ou clérigos.
Ou seja, passou a bola para o lado de quem se assume como católico, como que a dizer que todos os membros da Igreja devem entrar no jogo de sonhar e fazer a Igreja do futuro. E que, nesse jogo, não há nem espectadores nem suplentes.
Na verdade, com o desafio do Sínodo, Francisco foi mais longe: convida todos e cada um(a) a tomar a palavra, pessoalmente ou em pequeno grupo, o que já não é pouco, em comunidades que estão mais habituadas a esperar que o padre fale e diga o que é para fazer e até o modo de fazer.
Francisco quer mais dos crentes: espera que eles se exprimam mas, não menos importante, que eles escutem os outros, pondo especial atenção no protagonismo dos que andam mais arredados, dos que são postos ou se põem de lado, dos que andam menos envolvidos nas “coisas da Igreja”, que pensam, sentem e vivem de modos diferentes, e mesmo ‘fora da caixa’.
O Papa escolheu uma equipa para o acompanhar na animação deste projeto de quase três anos, que inclui bispos, padres e (poucos) leigos, homens e (poucas) mulheres, gente madura e (nenhuns) jovens neste inédito e desafiante empreendimento que começa por ouvir o ‘povo de Deus’. Ele e toda a equipa esperam não tanto que se redijam documentos muito bonitos e cheios de sugestões, mas que, com o sínodo, se comece já a experimentar o caminho sinodal, que se pretende que venha a ser o modo normal de ser Igreja.
Por conseguinte, o Sínodo sobre a sinodalidade, que terá um ponto culminante em Outubro de 2023 com a assembleia de bispos no Vaticano, não é tanto um acontecimento ou uma tarefa de que agora as comunidades, movimentos e paróquias estão incumbidas, para depois passar à frente e voltar tudo “ao normal”. É uma forma de experimentar um novo modo de viver a fé em Jesus Cristo, nas realidades do dia-a-dia, mais apoiado uns nos outros, sem deixar ninguém para trás e com a participação do maior número. É um processo que se inicia com o Sínodo, mas tem o futuro à sua frente. Isto, claro, se não se virar as costas ao desafio.
Austrália, Alemanha, América Latina: movimento imparável?
Em várias partes do mundo, o caminho sinodal já estava lançado, fruto de circunstâncias particulares. Na Austrália, por exemplo, a amplitude e o impacto dos abusos sexuais do clero foram tão violentos, que a Igreja Católica foi posta em causa e teve de se pôr ela mesma em causa. Uma das formas de se repensar e redefinir foi através da convocação, em 2018, de um Concílio Plenário que, depois de várias etapas de auscultação (e atrasos por causa da pandemia), realizou a primeira assembleia na primeira metade de outubro de 2021, procurando responder à pergunta: “O que está Deus a pedir-nos na Austrália neste momento?” A segunda assembleia está prevista para julho deste ano de 2022.
O caso da Alemanha, com o seu Caminho Sinodal, é diferente: ele nasce da confluência de uma série de problemas sentidos pela Igreja alemã internamente e na sua interação com as mudanças culturais e sociais no país, de que são exemplo as relações ecuménicas, as questões de género, o papel da mulher na sociedade e na Igreja e, naturalmente, os abusos sexuais do clero e o abandono da Igreja por parte de muitos fiéis. O Synodale Weg (Caminho Sinodal) assumiu, desde o início, como objetivo central, refletir e decidir sobre reformas na vida eclesial; nesta linha, o caminho seguido pelo sínodo assenta em quatro fóruns, cada um em torno de um tópico específico: (a) Poder e separação de poderes na Igreja – Participação conjunta e envolvimento na missão; (b) A vida em relacionamentos bem-sucedidos – Vivendo o amor na sexualidade e no casal; (c) A vida dos padres nos dias de hoje; e (d) Mulheres em ministérios e cargos na Igreja.
A assembleia sinodal, que tem reivindicado poderes de decisão nas matérias debatidas, é composta por 230 membros, metade dos quais são leigos, e é dirigida por um bispo e por um responsável do Comité Central de Católicos Alemães.
A metodologia e o ‘espírito’ deste Caminho Sinodal alemão suscita, desde o início, reservas quer de uma parte minoritária de bispos e leigos, quer de figuras da Igreja alemã como o cardeal Walter Kasper, de altos responsáveis do Vaticano, a começar pelo secretário de Estado, Pietro Parolin, e pelo cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos. O próprio Papa, que não tem afrontado diretamente este processo, dirigiu uma Carta ao Povo de Deus que peregrina na Alemanha, em 29 de junho de 2019, vários meses antes do arranque do sínodo. Nela, Francisco apelava a que os membros sinodais pusessem o foco das atenções mais na evangelização e menos na vida interna da Igreja. A meio do processo, não é ainda claro o desfecho que este processo vai ter.
Com características bastante diversas e peculiares, mas muito em sintonia com o espírito do caminho sinodal convocado pelo Papa foi o processo e realização da Assembleia Eclesial da América Latina e das Caraíbas.
Mobilizando todo um subcontinente, começou a ser preparada em meados de 2020 e contou com o envolvimento de mais de 70 mil pessoas dos diferentes países, nas fases de consulta e escuta, em grupos e fóruns temáticos. A assembleia propriamente dita realizou-se, em modo misto – presencial e sobretudo a distância – entre 21 e 28 de novembro de 2021, na Cidade do México, com a participação de mais de mil delegados.
Com a memória do V Encontro do Episcopado Latino-americano, realizado em Aparecida, no Brasil, em 2007, em cujo documento final interveio de forma decisiva o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, esta assembleia procurou mobilizar as igrejas dos diferentes países, a todos os níveis. E a semana foi uma sucessão de testemunhos, diálogos de grupos, conferências e celebrações, cuja documentação se encontra disponível no respetivo site.
Outras Igrejas, como a italiana e a irlandesa, encontram-se também em processos de preparação dos respetivos sínodos, procurando-se, em todos os casos, articulações entre as dinâmicas locais e regionais e a dinâmica mais vasta da Igreja universal.
E em Portugal?
Para quem segue de perto as atividades das diferentes dioceses portuguesas, o que se vê sobre o Sínodo de 2023 pode aparecer, para já, como pouco expressivo e entusiasmante – mesmo sabendo que muito do que acontece nesta fase de consulta e de auscultação se faz em pequenos grupos que não andam, propriamente, à procura de visibilidade mediática.
Ao percorrer os sítios de cada diocese na Internet, verificam-se situações bastante diversas. Vários deles nem sequer têm na página de abertura qualquer menção ao Sínodo, ainda que a diocese tenha criado uma página específica dedicada ao caminho sinodal. Em boa parte dos casos, esses sítios remetem fazem chamada para uma zona do sítio, que tem aquilo que poderia ser caraterizado como informação oficial. São raras as páginas diocesanas dedicadas ao processo sinodal que dão conta das movimentações, formações, produção e distribuição de cartazes ou desdobráveis, textos, documentos ou vídeos de reflexão.
Finalmente, uma parte cinge-se à nomeação do coordenador diocesano (um clérigo) e à cerimónia de abertura e, eventualmente, à inclusão de ligações para os documentos e sítios de referência no Vaticano. No total, haverá meia dúzia de dioceses em que a referência ao Sínodo na Internet exprime vida local.
Alguns pequenos sinais ilustrativos deste aparente lugar subalterno do Sínodo: nos sites, surge por vezes alguma referência ao Sínodo ao lado do plano de ação pastoral, como se fossem dois carris que não se encontram; continua-se, em algumas das dioceses, a usar a expressão “pré-sinodal”, como se a atual fase não fosse já a primeira etapa do Sínodo, aberta a todo o povo de Deus e cujo processo de consulta na fase diocesana decorre até Agosto deste ano de 2022; as mensagens natalícias dos bispos, nesta quadra, praticamente não ligaram o tempo litúrgico e festivo com a escuta sinodal das dioceses; por fim, na auscultação, feita pela agência Ecclesia, de vários jornalistas de meios de comunicação da Igreja sobre o que retiveram de relevante do ano de 2021 e o que esperam para o de 2022, nenhum sentiu o Sínodo com força bastante para merecer referência na revisão do ano findo (apenas uma jornalista se lhe referiu, mas no seu olhar prospetivo).
Ficam, da visita feita ao que se diz e mostra sobre o Sínodo (e que pode não corresponder ao esforço que, de facto se está a fazer no terreno), algumas interrogações para leitores eventualmente mais empenhados e inquietos em torno do desafio do Papa a toda a Igreja:
- Sabendo-se que este Sínodo não pretende ser um acontecimento mas um processo e um caminho experiencial de longo fôlego, não seria necessário estar já a olhar para (e preparar) os tempos posteriores à fase de escuta?
- Sendo a Igreja convidada a abrir as portas e entrar em diálogo com setores que lhe são tangenciais ou marginais, não será preciso pensar iniciativas mais abertas e menos convencionais, que criem espaço e motivação para esse encontro?
- É razoável colocar questionários que pretendem alegadamente “ouvir todas as pessoas de boa vontade”, formulados em linguagem que nem a grande parte dos fiéis entende?
- A pretexto de salvaguardar que um sínodo não é um congresso ou uma luta de grupos e argumentos para ver quem ganha, não se corre o risco de esvaziar a atenção aos sinais dos tempos, aos problemas dolorosos que enfrenta a sociedade e a Igreja, confundindo aquela preocupação com a salvaguarda da unidade?
- Em sociedades cada vez mais crispadas e polarizadas, como podem os cristãos testemunhar a proximidade e o diálogo, especialmente dos que são marginalizados e deixados para trás?
Há, certamente, mais questões a enfrentar. Ficam para já estas perguntas.
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