A infeliz (e entretanto rapidamente abandonada) proposta da Comissão Europeia de impor (ou apenas aconselhar) aos seus funcionários a omissão de referências ao Natal nas tradicionais saudações da quadra respetiva suscitou múltiplas reações.
Pretender que a harmonia das sociedades europeias onde hoje convivem pessoas de múltiplas culturas e religiões implique o cancelamento das raízes culturais cristãs dessas sociedades, ou o seu confinamento à esfera privada, seria dar razão a quem recusa o acolhimento dessas pessoas para preservar tais raízes (se essa convivência exige que cancelemos o Natal, então não queremos essa convivência…). Mas essa pretensão não tem razão de ser. Pelo contrário, o Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti e em várias ocasiões, tem salientado que as culturas se enriquecem (não se perdem ou desaparecem) com contributos de outras, porque elas não são estáticas, e é esse o desafio com que se confronta hoje a cultura cristã da Europa. A convivência e o diálogo dos cristãos com pessoas de outras religiões ou convicções também os enriquece, além do mais porque é uma ocasião de darem testemunho da sua fé, sem qualquer pretensão de a impor.
Uma outra observação que deve ser suscitada por tal proposta tem a ver com as razões pelas quais se justifica celebrar o Natal, mesmo para quem não creia em Jesus Cristo como Deus feito homem e no seu nascimento como manifestação do supremo amor de Deus pela humanidade. Esse nascimento e as transformações provocadas pelo cristianismo marcaram a história da humanidade em muitos âmbitos e não é por acaso que uma boa parte desta passou a dividir o tempo em duas eras: antes de depois de Cristo. Não tiveram sucesso as tentativas das revoluções francesa e soviética de substituir essa divisão do tempo e não tem tido sucesso, até agora, a tentativa de designar como “era comum” o período até agora designado como “depois de Cristo”.
Muitos fenómenos hoje impensáveis, ou quase unanimemente condenados, não o eram antes dessas transformações (dessa verdadeira revolução) que tem raízes, de uma e de outra forma, no cristianismo. Nem sempre disso nos apercebemos, tão habituados que estamos a determinadas formas de sentir e reagir. É verdade que essas transformações não se deram de um dia para o outro e que os cristãos muitas vezes não foram coerentes (às vezes até inconscientemente) com as implicações da mensagem que receberam e pretendiam transmitir. E também é verdade que essas implicações estão hoje ainda longe de se esgotar, como constantemente podemos verificar. Mas também por isso deve continuar a ser celebrado o nascimento de Jesus Cristo, porque esse nascimento não só marcou a história da humanidade, como deve continuar a marcá-la.
Sobre as transformações que o cristianismo trouxe à história da humanidade, há uma vasta bibliografia, de autores de várias convicções e com várias perspetivas. Indico apenas alguma que conheço:
Francesco Agnoli, Indagine sul Cristianesimo – Come si è construito il meglio della civiltà (La Fontana di Siloe, 2014);
Alvin Schmidt, How Christianity Changed the World (Zondervan, 2004);
Rodney Stark, The Triumph of Christianity (Harper Collins, 2011);
David Brog, In Defense of faith – The Judeo-Christian idea and the struggle for humanity (Encounter Books, 2010);
Thomas E. Woods Jr., O Que a Civilização Ocidental Deve à Igreja Católica (tradução portuguesa, Aletheia, 2009);
Nik Spencer, The Evolution of the West – How Christianity shaped our values (SPCK, 2016);
Tom Holland, Dominion – The making of the Western World (Little Brown, 2019).
De entre os fenómenos hoje impensáveis ou quase unanimemente condenados, mas correntes e geralmente aceites em várias sociedades pré-cristãs, esses autores destacam: o infanticídio e o abandono de crianças à nascença, especialmente quando atingidas por alguma deficiência; o abandono de idosos e doentes (os hospitais e a assistência aos doentes, como hoje as conhecemos eram desconhecidos na Roma antiga); a morte de pessoas humanas como motivo de divertimento (nas lutas de gladiadores); a poligamia e várias formas de “coisificação” da mulher; os sacrifícios humanos oferecidos aos deuses; a deificação do titular supremo do poder político (por isso, não sujeito a qualquer limitação); a escravatura (a que em muitos casos estava sujeita a maioria da população, como na Grécia, “pátria da democracia”); o desprezo para com os pobres; ou o desprezo para com o trabalho manual.
Alguns episódios emblemáticos podem ser a este respeito evocados: a forma como os cristãos no Império Romano se aproximavam e cuidavam das vítimas da peste (o que suscitava admiração por contrastar abertamente com a atitude então corrente); ou as palavras de São Paulo a Filémon, exortando-o a tratar o seu escravo como um irmão (sem diretamente contestar juridicamente a escravatura, colocava assim a base que, no plano dos princípios éticos, haveria de implicar a sua abolição). Afirma Alvin Schmidt, no livro acima referido (pág. 131), que quando hoje alguém, independentemente da sua fé, de forma espontânea, não fica indiferente e revela compaixão para com as vítimas de tragédias humanas (catástrofes naturais, massacres, guerras ou fome), a essa reação não é indiferente a influência de dois mil anos de cristianismo.
Não há, pois, dúvida de que o nascimento de Jesus Cristo marcou a história da humanidade e que esta seria bem diferente se Ele não tivesse nascido. E também que esse nascimento e a mensagem que trouxe deverá continuar a marcar essa história, pois o seu potencial transformador está longe de estar esgotado. É assim também porque a verdade é que alguns dos fenómenos acima mencionados que, por influência do cristianismo, têm sido unanimemente condenados (designadamente no que à proteção da vida humana diz respeito) já não o são hoje tão claramente.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.
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