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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Beja: Os cânticos do Natal Alentejano

Como é sabido, o cante tem duas vertentes: a profana e a religiosa. Uma e outra se completam, porque são duas dimensões da mesma alma do povo alentejano.

Os alentejanos sempre usaram o seu cante para se relacionarem com Deus, para rezar. Provam-no os numerosos cânticos populares religiosos recolhidos por todo o Baixo Alentejo, de que se destacam os cânticos do ciclo do Natal e da Quaresma/Paixão, os cânticos aos Santos Populares e a Nossa Senhora e também as preces para pedir a Deus a graça da chuva.

Hoje vem muito a propósito falar do ciclo do Natal, com os cânticos do Deus Menino, das Janeiras e dos Reis Magos. Este repertório é certamente o mais rico de toda a tradição da música popular religiosa do Baixo Alentejo. São muitas as localidades onde, nas recolhas feitas por mim próprio e pelo P. Aparício entre 1978 e 1982, e não só, encontrámos este tríptico completo, verificando também que são esses os cânticos que mais resistiram à erosão do tempo. Essa constatação era já assinalada em finais do séc. XIX: “O que ainda subsiste apesar da sua origem secular – tão secular como a do Presépio – é o costume dos descantes ao Deus Menino, às Janeiras e aos Reis” (Dias Nunes, in A Tradição de Serpa, Janº de 1899).

Deste vastíssimo repertório encontrámos cantos ao Deus Menino em S. Matias, Cabeça Gorda, Beringel, Trigaches, Trindade, Baleizão, Vidigueira, Selmes, Cuba, Vila Alva, Peroguarda, Pias, Aldeia Nova de S. Bento, Serpa, Brinches, A-do-Pinto, Vila Verde de Ficalho, Safara, Santo Aleixo da Restauração, Aljustrel, Messejana, S. Marcos da Ataboeira, etc. E também os cantos dos Reis e das Janeiras em muitas localidades do Baixo Alentejo. Tudo verdadeiros tesouros da cultura alentejana que os filhos desta terra, mesmo longe dela, ainda conservam no coração, graças a essa recolha que os salvou do esquecimento. Hoje, quarenta anos depois, felizmente, esses tesouros estão recuperados e voltam a ecoar nas celebrações litúrgicas das Igrejas do Alentejo, nas noites de “Cante ao Menino” promovidas pelos grupos corais alentejanos (até na zona da Grande Lisboa), nos serões familiares e à volta da fogueira de Natal.

São, em geral, cânticos muito melismáticos, isto é, muito mais ornamentados em relação à generalidade dos restantes e, por isso, de difícil execução, cantados em família, à volta do madeiro, ou na Igreja, com letra diversificada e variada. O texto é sempre repassado de emoção, assombro, ternura, admiração e fé. Ainda no domingo passado fiz um concerto de Natal com o Coro do Carmo de Beja na Salvada, aqui bem perto de Beja. Preparámos de propósito um canto dos Reis que outrora se cantou naquela localidade e também noutras terras do concelho de Beja. Ao fim perguntei: – Alguém reconheceu este cântico? Alguém se lembra dele? Uma jovem senhora respondeu: – Eu estou toda emocionada e já chorei. Este cântico cantava-o sempre a minha avó na noite de Natal! Aprendi-o com ela…

Voltando ao texto, gostaria de pôr em relevo a linguagem fortemente poética, teológica   e bíblica de alguns deles. Por exemplo, o Menino de Pias tem este pequeno Refrão:

Ponde em nós os vossos olhos, / misericórdia, amor!

Não conheço nada de semelhante nos cantos natalícios de outras regiões. Pede-se a Jesus para olhar para nós, chamando-Lhe “misericórdia e amor”.  Este cântico foi-me transmitido por um pastor, em Pias, na década de 80 do séc. XX. Quem ensinou o povo crente do Alentejo a rezar desta maneira? Nesta linguagem há ressonâncias do Salmo 145, 8 e Ef 2, 4, que falam de Deus “rico de misericórdia”, e de Jo 4, 16, que nos dá a mais bela definição de Deus: “Deus é amor”.

Em S. Matias, concelho de Beja, com uma música completamente diferente e o texto das estrofes também muito diferente, canta-se um Refrão semelhante. Assim:

Vossos olhos / de misericórdia, amor!

Repare-se que a frase está incompleta, não tem verbo. O crente, como que atónito e surpreendido pela grandeza do mistério do Verbo encarnado, quase não tem palavras para se exprimir: contempla extasiado e balbucia apenas o essencial. Há aqui algo que quase se pode comparar ao jubilus de que fala S. Agostinho, no seu comentário sobre os Salmos: “aquela melodia que traduz a incapacidade de exprimir por palavras o que sente o coração”. Neste caso do cântico ao Deus Menino, de S. Matias, não é bem isso, mas é quase: não são necessárias muitas palavras para exprimir o que sente o coração. Só as mínimas. O povo crente do Alentejo tem destas coisas.

P. António Cartageno








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