Páginas

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Fragilidades

O senhor pode ir lá fora. Caminhe e avalie como ficou. O pobre velho escutou a recomendação e estancou. Usava um daqueles aparelhos para surdez, denunciados pela haste grossa atrás das orelhas. Exibia uma peruca, tão constrangedora quanto todas as perucas masculinas. Enquanto processava o que devia fazer, enquanto ruminava o próximo passo, tentava situar-se na sala da clínica óptica. Ir até a rua? Como, se mal parecia saber onde se encontrava? Dez passos à frente, curva à esquerda, vinte passos à frente e uma guinada à direita. Pronto! Estaria na rua. Mas parecia impossível. Não fosse pela caridade, e pela antevisão do que nos aguarda, era de rir. O pobre homem era uma caricatura ambulante, com feições daquelas dignas de quadrinhos.

A profissional que o atendera fechou a porta assim que lhe deu a quase ordem. E o deixou no vazio de sua fragilidade e solidão. Passado o estupor, realinhou-se, e depois de alguns instantes passou a andar. Sabe Deus o quanto enxergava com suas novas lentes. Com os sentidos combalidos, e a força de vontade de um gigante, desviou-se de uma pequenina que insistia em correr pela clínica, espalhando pelo piso a água que buscava num bebedor. Era mais um sabão no caminho do heroico cidadão. Minutos depois o vi pagando a conta no balcão. No mundo moderno, cumpria a máxima do mercado: pago, logo existo.

Por falar em surdez, falhei três vezes na tentativa de visitar em Bonn a casa em que nasceu Beethoven. Foi meu compositor predileto durante muitos anos, quando sua força, seu vigor e arrebatamento combinavam à perfeição com minhas juventude. E com minhas tantas inquietudes. A Beethovens Geburtshaus fica no centro de Bonn, cuja praça principal é dominada pela estátua do filho mais ilustre daquela que foi, por razões políticas, a capital alemã até que o mundo admitisse o retorno de Berlim à função que perdera na segunda guerra.

Mastiguei a frustração a cada tentativa. Ou chegava em cima do laço, com o museu fechando, ou era feriado, ou coisa que o valha. Em recente viagem decidimos permanecer três noites em Bonn, tempo para conhecer uma cidade que nos parecia muito agradável. E de fato o é. É claro que desta feita deu certo e finalmente visitei os tímidos aposentos em que o choro daquele gênio se fez ouvir pela vez primeira. Como de praxe, museus desta natureza contêm menos do que se espera, razão pela qual é sempre melhor visitar a casa em que o ilustre cidadão passou seus últimos dias, como é a casa de Goethe, em Weimar. Beethoven morreu e foi sepultado em Viena, cidade em que se hospedou em vários lugares, sempre à procura de paz para trabalhar.

Dentre as melhores curiosidades do museu, lá estão expostos alguns dos instrumentos de que Beethoven lançou mão para escutar melhor. São peças metálicas, algumas das quais lembram um chifre, cujo uso era certamente humilhante. Mal dá para imaginar Beethoven com aquelas traquitanas em público, razão pela qual recolheu-se na vida privada, gestando em quase total surdez algumas das maravilhas da música de todos os tempos, com especial destaque para a última sinfonia, a nona. No acanhado jardim do museu, um busto do grande compositor traduz seu sofrimento, que converteu em notas eternas. O bronze crispado lhe faz justa homenagem.

No último dia em Bonn visitei o cemitério antigo da cidade, onde estão sepultados a mãe de Beethoven e o casal Clara e Robert Schumann, o romântico do piano. Schumann viveu seus  últimos anos, atormentados, numa clínica do subúrbio, hoje convertida em museu, a Schumannhaus. Fronteada por um busto do compositor, em bronze amargurado, a traduzir as depressões que rondaram sua breve existência, a  casa é um belo exemplo de preservação de memória e de promoção cultural, uma vez que o espaço promove concertos mensais.

Voltemos ao cidadão da clínica, o dos passos incertos, como os de um bêbado. Em idade avançada, embriagado pela aguardente dos anos, é já uma coletânea de entorpecimentos. É bem possível que viva como se apresentou na consulta: solitário. Afinal, se companhia tivesse, aquele era um momento impróprio para o esquecimento.

Por vezes achamos que somos traídos pelo tempo, esta brisa que passa e não se faz sentir, senão pela fronte encanecida. Tolice. Nós é que erramos ao nos imaginarmos cúmplices dele, porque o tempo não tem compadres e a todos deixa pelo caminho. E nem adianta tentar brigar, porque ele próprio, o tempo, é velho, surdo e cego.

J. B. Teixeira






Sem comentários:

Enviar um comentário