Entre o que imaginava e o que encontrei no Líbano havia um abismo de desconhecimento que em uma semana consegui mitigar um pouco. Tive a sorte de me hospedar no Convento dos Franciscanos, na região de Gymaizeh, no centro de Beirute, o que ajudou nos deslocamentos para os pontos de interesse. Dormi bem pouco, caminhei muito e trabalhei o suficiente para me sentir exausto a cada início de madrugada. O plano original era ir até Damasco, mas não consegui o visto. Cento e vinte quilômetros me separaram do destino de Paulo, hoje acossado por todo o tipo de demoníacos, por milícias e por um horizonte tormentoso. Quem sabe um dia?
Deixo o Líbano com o perfume de suas árvores milenares, os cedros, e o cheiro dos pães que marcam as ruas do país. Com dezessete religiões regulares, incluindo o culto druso, a terra que tem Gibran Khalil Gibran como seu poeta maior não é das mais fáceis para quem se vira com as próprias pernas e não fala árabe. Os cedros crescem com maior vigor nas alturas, como no vilarejo natal de Gibran, Bicharre, a 1500 metros do nível do mar. Além de poeta, Gibran também foi filósofo, ensaísta e pintor. Morreu nos Estados Unidos, moço, por conta de possível cirrose. Não li muita coisa de sua lavra, mas lembro que ganhei um de seus livros com uma dedicatória que reproduzia uma frase de Campoamor: “En este mundo traidor, nada es verdad ni mentira, todo es según el color del cristal con que se mira”. Como fraseado, causou impressão no jovem de então. Hoje já não me seduz, por trair um deletério relativismo, ainda que poético.
A frase relativista não vale para a vida espiritual, na busca da verdade, por mais embuçada que esta se apresente. Mas parece talhada para a política internacional, onde um sim pode ser um não. Política esta que destrói reputações com a mesma velocidade com que fabrica celebridades numa noite. Quase todas as pessoas com quem conversei sobre meu desejo de visitar Baalbeck, Vale do Bekaa adentro, desaconselharam a aventura. Porque a região é dominada pelo Hezbollah e nos últimos tempos algumas pessoas foram sequestradas. Vencido pela curiosidade em conhecer o maior sítio romano do Oriente Médio, tomei três conduções para chegar às ruínas de Baalbeck, visitadas por D.Pedro II em 1876. Em seu Diário ele fez a seguinte observação: “A entrada nas ruínas de Baalbeck, à luz de fogaréus e lanternas atravessando por longa abóbada de grandes pedras, foi triunfal e as colunas tomavam dimensões colossais”.
Na viagem constatei que os medos eram infundados e a presença do Hezbollah - cujos soldados não têm a aparência suicida, como em alguns vídeos veiculados por grandes emissoras,- não é mais sentida do que a do exército libanês no resto do país. Pelo que auscultei, o Hezbollah conta com a simpatia do povo, que atribui a ele a preservação das fronteiras do Líbano, que supostamente não mais existiriam se a milícia não existisse. Na guerra assimétrica com Israel, segundo um estudioso de táticas militares, o Hezbollah foi como o rato que conseguiu surpreender e ferir o gato. O Brasil não considera o Hezbollah como organização terrorista, até porque tem representação no parlamento. Seu líder, Hassan Nasrallah, porém, tem paradeiro incerto. É um dos líderes mais perseguidos do planeta e sua localização é segredo absoluto.
A despeito do valor de seu sítio arqueológico, Baalbeck nos traz outra lição. Seu mais famoso hotel, Palmyra, hospedou personalidades como o Imperador alemão Guilherme II e o general Charles de Gaulle. Dom Pedro II preferiu dormir numa tenda, junto às ruínas, decisão esta visceralmente contrária à dissipação de recursos promovida pelos pais da pátria de hoje, que torram fortunas em limusines e hotéis caríssimos. E se dizem de esquerda! E republicanos!
No retorno a Beirute, um sujeito simples, que sabia tanto de inglês quanto eu de árabe, tentou entabular uma conversa. Perguntou se eu era alemão. Quando respondi que era brasileiro, abriu um generoso sorriso e disse gostar muito do “Barazil”. Enumerou alguns de nossos grandes jogadores de futebol, mas frisou que a nossa seleção anda trôpega. Como discordar? Percebi no Líbano, entretanto, que ainda temos um crédito internacional por conta de nossa cordialidade. Trata-se de um patrimônio notável, crescentemente dilacerado pelos tantos canalhas que nos desgovernam e pela guerra civil sob a qual vivemos, sem nome, nem ideologia, pelo menos por enquanto. Ainda há tempo para resgatar a cordialidade e reelegê-la como o nosso cedro. Será a reconquista de nossa identidade, esta árvore que temos dizimado com o machado da estupidez.
J. B. Teixeira |
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