O Festival Terras sem Sombra termina com “chave de ouro” uma
temporada de concertos que fizeram história no Baixo Alentejo. Numa
iniciativa levada a cabo em parceria com o Município de Beja, a Catedral
desta cidade – alvo de um exemplar restauro e aberta recentemente ao
público – será a anfitriã do último espectáculo, já no próximo sábado, 18
de Junho, às 21h30, com o ensemble
vocal e instrumental de música antiga La Grande Chapelle,
dirigido pelo maestro Albert Recasens.
Natural de Cambrils (Tarragona), Recasens iniciou, em 2005, um ambicioso
projecto de recuperação do património musical peninsular, com a fundação
da orquestra barroca La Grande Chapelle e da etiqueta Lauda, de cuja
direcção artística se ocupa desde 2007. Consagrando especial atenção ao
repertório dos séculos XVI a XVII, tem dado a conhecer obras inéditas dos
grandes mestres deste período, com estreias ou primeiras gravações
mundiais nos tempos modernos.Pela excelência artística, os discos de La
Grande Chapelle obtiveram galardões e prémios internacionais de
reconhecido prestigio no âmbito da música antiga, como dois Orphées d'Or (Academia
do Disco Lírico de Paris, em 2007 e 2009), o “Selo do ano” dos Prelude Classical Music Awards
2007 (Holanda), 5
de Diapason, “CD Excepcional” de Scherzo, “4 stars” do BBC Magazine, Preis der deutschen
Schallplattenkritik ou “Critic's Choice” de Gramophone, etc.
Ultimamente, Albert Recasens tem vindo a interessar-se, com especial
afinco, pelo estudo dos compositores portugueses do Maneirismo e do
Barroco, ressuscitando obras que jazem em silêncio, há séculos, em
arquivos e bibliotecas de todo o mundo, mas são uma parte destacada – e
merecedora de grande atenção – do património musicológico do nosso país.
Redescobrir um
período esquecido da música ibérica
A união de Portugal e Espanha na denominada “Monarquia Dual” (1580-1640),
com a consequente perda da autonomia lusa, assim como a crise económica
que marcaria algumas das suas etapas, provocaram o êxodo de artistas e
músicos portugueses para o reino vizinho. La Grande Chapelle tem vindo a
revelar três importantes compositores portugueses que fixaram residência
em Madrid ou Sevilha, no séc. XVII – Manuel Machado, Fr. Manuel Correa e
Fr. Filipe da Madre de Deus –, pondo em confronto a sua música com a do
espanhol Juan Hidalgo.
O programa de Beja, em larga medida inédito, deleita-nos com uma selecção
do magnífico repertório de alguns dos principais músicos ibéricos do séc.
XVII que revelam características estilísticas comuns, entre elas o uso
dos géneros em voga (tonos,vilancicos e romances), a ousadia harmónica ou
a ênfase na retórica e na expressão do texto. Trata-se, sem dúvida, de um
acervo único, digno de ser resgatado do esquecimento em que jaz, tanto
mais que à beleza da música destas singulares peças, religiosas e
seculares, se une a beleza das letras, da autoria de alguns dos melhores
poetas que escreveram em castelhano na época, fossem eles espanhóis ou
portugueses. A tradução para o nosso idioma, também ela inédita, deve-se
ao poeta alentejano Ruy Ventura (Portalegre, 1973).
Fr. Manuel Correa, discípulo de Filipe de Magalhães, membro da capela do
8.º duque de Bragança, D. João (rei de Portugal em 1640), e de Fr. Manuel
Cardoso. Nascido em Lisboa, ca. 1600, era filho de um instrumentista
dessa capela. Professou, como carmelita calçado, em Madrid, cidade onde
exerceu o cargo de prefeito de música, até ser nomeado mestre-de-capela
da catedral de Sigüenza, em 1648. Dois anos mais tarde, ganhou o
magistério em Saragoça, sucedendo a Diego de Pontac; desempenhou este
cargo até à morte (1653). Notabilizou-se pela composição de vilancicos, tonos humanos
(profanos) ou divinos
e romances em língua castelhana, mas foi igualmente muito apreciada a sua
obra em latim.
Igualmente vinculado à Ordem do Carmo, o vihuelista e compositor Fr. Filipe da
Madre de Deus (Felipe de la Madre de Dios, nas fontes espanholas) nasceu
em Lisboa, ca.
1630, e esteve activo em Sevilha, antes de ser chamado por D. João IV
(1654) e servir na Câmara Real do seu sucessor, D. Afonso VI (1656). Em
1668, restabelecida a paz com Espanha, pôde voltar a Sevilha, onde
exerceu o cargo de mestre-de-capela, na igreja dos Carmelitas, até à
morte (ca.
1688 ou 1690). As suas obras, principalmente vilancicos e tonos, conservam-se
em instituições tão diversas como a catedral da Cidade da Guatemala ou a
Bayerische Staatsbibliothek, de Munique.
Porém, o mestre português que mais altas responsabilidades teve, em
Espanha, no período em apreço foi Manuel Machado, que nasceu em Lisboa, ca. 1590. Formado na
catedral desta cidade, sob a direcção de Duarte Lobo, ganhou fama como
instrumentista de harpa. Fixou depois residência em Madrid, com o pai,
também harpista, para trabalhar na Capela Real. Em Agosto de 1639, foi
nomeado músico de câmara por Felipe IV. Faleceu em Madrid, em 1646. A sua
produção, tal como a de Fr. Manuel Correa, é maioritariamente profana e
conserva-se em diversos cancioneiros polifónicos da época, como o de
Sablonara (Munique), Casanatense (Roma), Libro de Tonos Humanos (Madrid),
Onteniente e Lisboeta. Na pujante biblioteca de D. João IV existiam obras
destes autores, tanto em latim como em romance, que se perderam com o
terramoto de 1755.
As composições de autores portugueses activos em Espanha confrontam-se
com as de Juan Hidalgo, harpista da Capela Real – colega, pois, de
Machado – e mestre da Câmara Real, ao serviço de Felipe IV e de Carlos
II, uma referência indiscutível da história da música europeia. Hidalgo
destacou-se por ter sido o criador, com Calderón de la Barca, das duas
primeiras óperas espanholas, La
Púrpura de la Rosa e Celos, aun del Aire Matan,
representadas, em 1660, para festejar a Paz dos Pirenéus (1659) –
mediante a qual Luís XIV renunciou a prosseguir com a sua ajuda à causa
portuguesa na Guerra da Independência – e o casamento da infanta Maria
Teresa, filha de Filipe IV, com o rei francês.
Entre as
ribeiras de Terges e Cobres: turismo da natureza e sustentabilidade
Paralelamente aos concertos, o FTSS promove o conhecimento da
biodiversidade da região através de percursos que sensibilizam para a
preservação da natureza e o reconhecimento de boas práticas ambientais.
Assim, na manhã de 19 de Junho, músicos, espectadores, membros das
comunidades locais, autarcas e cientistas unem-se para uma iniciativa de
voluntariado, que tem por mote
Entre Ribeiras: Na Confluência das Ribeiras de Terges e Cobres – Turismo
de Natureza e Sustentabilidade. Esta acção decorre num
itinerário entre os cursos fluviais e um barranco afluente, cuja
vegetação foi salvaguarda ao longo de gerações pelos proprietários da
herdade. No final, em torno de uma unidade de agro-turismo, denominada
Xistos, na freguesia da Trindade, esperam-nos um conjunto de descobertas:
o potencial natural e o saber fazer.
As bacias
hidrográficas das ribeiras de Terges e de Cobres cobrem uma parte
significativa do Campo Branco. O relevo homogéneo e monótono da
peneplanície baixo-alentejana altera-se apenas na presença destes cursos
de água que, pelas suas características, guardam muita da biodiversidade
original do território, ao contrário das áreas envolventes, moldadas pela
ocupação humana de centenas de gerações de pastores e agricultores. Esta
acção tem a colaboração do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Parque Natural do Vale do Guadiana) e do Município de Beja.
Lembrando
Armando Sevinate Pinto e Manuel de Castro e Brito
Irá realizar-se, no final da jornada, uma evocação, pelos
seus amigos e colegas, de Armando Sevinate Pinto [1946-2015]. Descendente
de uma família de lavradores do concelho de Ferreira do Alentejo e
engenheiro agrónomo, desempenhou, entre outros cargos públicos, o de
ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas
(2002-2004). Grande apaixonado pelo mundo rural e pelo Alentejo, foi o
primeiro presidente do Conselho de Curadores do Festival Terras sem
Sombra, salientando a importância da sociedade civil na defesa e promoção
da música, do património e da biodiversidade.
Será igualmente
lembrado outro amigo do FTSS, Manuel de Castro e Brito, nascido em 1950,
em Beja, e falecido em Março passado. Presidente da ACOS – Associação de
Agricultores do Sul e da Ovibeja desde 1989, alcandorou este e outros
projectos à escala nacional. Colaborou com o Departamento do Património
Histórico e Artístico da Diocese de Beja na recuperação dos valores
culturais associados à antiga transumância, um dos fios condutores para a
valorização das igrejas e ermidas que acompanham as antigas canadas
reais, ligando o Baixo Alentejo à Serra da Estrela e à Meseta Ibérica.
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