O Festival Terras sem Sombra valoriza os recursos naturais
e dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais,
culturais e paisagísticos e que apresenta, em termos patrimoniais,
tanto do lado da cultura como da biodiversidade, um dos melhores
índices de preservação da Europa. Nesta comunhão de valores, introduz
no seu programa para 2016 – o ano em que celebra a 12.ª edição – uma
ópera infanto-juvenil com uma mensagem ecológica, tendo como pano de
fundo a temática amazónica, mas remetendo para uma perspectiva mais
alargada, pois os problemas que afectam a natureza não conhecem
fronteiras. Onheama,
a famosa ópera em três actos de João Guilherme Ripper, sobe à cena no
Teatro Municipal, em Serpa, a 21 e 22 de Maio, às 21h30 e 16h00,
respectivamente, com entrada livre, sujeita à lotação desta sala.
Inspirada no poema A
Infância de Um Guerreiro, de Max Carphentier, Onheama significa
eclipse em língua tupi. A mitologia dos povos indígenas de algumas
das principais regiões da Amazónia interpreta o eclipse como a acção
maléfica de Xivi, a terrível onça celeste, que devora Guaraci, o Sol,
e, insaciável no seu afã consumidor, sai depois à caça das estrelas e
de Jaci, a Lua. No dia em que Xivi conseguir engolir tudo o que reluz
no céu e saciar a sua fome tremenda, o mundo acabará. Somente um
guerreiro corajoso e de coração puro como Iporangaba poderá salvar a
Amazónia e o planeta (que dela depende) do terrível monstro. Por fim,
triunfa a luz; triunfa, afinal, a própria vida.
A peça de João Guilherme Ripper, um dos mais importantes autores
musicais brasileiros dos nossos dias – compositor, director de
orquestra, professor e presidente da Fundação Teatro Municipal do Rio
de Janeiro –, estreou em 2014, no Festival Amazonas, de Manaus, com
grande êxito, e foi reposta no ano seguinte, atingindo, de novo, enorme
sucesso. Faz já parte da história do célebre Teatro Amazonas, a “casa
da ópera” em Manaus, mas nunca foi apresentada na Europa, o que é uma
lacuna digna de nota.
Trata-se de uma ópera dos nossos dias, com um alcance sociológico
notável, ao integrar o público infanto-juvenil entre os possíveis
espectadores – e, evidentemente, ao promover a criação de novos
públicos. A parceria na realização do espectáculo com o Teatro
Nacional de São Carlos e o Município de Serpa sublinha ainda mais o
repto desta aventura musical, que conta com o envolvimento da
comunidade artística e educativa local, com destaque para o Grupo de
Teatro da Escola Secundária de Serpa, (En)cena, e a escultora
Margarida de Araújo. A cidade da margem esquerda do Guadiana abre as
portas do seu teatro – o que trouxe nova vida a este espaço, que
aguardava por melhores dias – a uma experiência, no mínimo,
surpreendente.
Mas a presente aventura estende-se também à construção local de toda
a ópera, cuja encenação é da responsabilidade de um dramaturgo
argentino que trabalha em Portugal, Claudio Hochmann. A cenografia e
os figurinos devem-se a Miguel Costa Cabral que, tal como os outros
produtores, tem vivido nos últimos meses em Serpa. A coreografia foi
concebida pelo criador cubano Yonel Castilla, também muito activo no
meio artístico português. Os figurinos são elaborados pelaOficina do
Traje, uma academia sénior que já produziu os trajes para o corso
histórico e etnográfico da cidade. Quanto aos cenários e adereços,
serão construídos nas oficinas da Câmara Municipal e em pequenas
empresas da região.
Entre os protagonistas, mais de centena e meia de pessoas, incluindo
dispositivos do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, do Coro
Juvenil do Instituto Gregoriano de Lisboa e da Orquestra Sinfónica Portuguesa,
a que se juntam crianças e jovens das escolas de Serpa. A direcção
musical corre a cargo do reputado maestro brasileiro Marcelo de Jesus
e o elenco dos solistas reúne algumas vozes de referência da cena
operática do nosso país: Carla Caramujo, Inês Simões, Marco Alves dos
Santos, Nuno Pereira e Carolina Andrade.
A incorporação dos produtos locais constitui outra das prioridades do
Festival Terras sem Sombra. No caso de Onheama, tudo gira em torno do
sobreiro, a árvore nacional portuguesa, e da cortiça, visto o montado
constituir uma das principais riquezas do Baixo Alentejo. De cortiça
são o Sol e a Lua que presidem a momentos-chave da acção dramática; e
a mesma matéria-prima, aclimatada a outras geografias e a outros
contextos culturais, encontra-se presente em toda a cenografia, o que
é uma forma de a universalizar. O seu potencial plástico, aliás, não
deixou de surpreender os artistas convidados pelo Festival.
Serpa, localidade emblemática da Margem Esquerda do Guadiana, recebe
com alvoroço a iniciativa. Das associações locais à Santa Casa da
Misericórdia, passando pelas empresas e pelas famílias, as “forças
vivas” do concelho movimentam-se. Entretanto, enquanto se aguarda a
sua apresentação no Alentejo, a ópera “brasileiro-alentejana” parece
fadada a nascer com boa estrela: algumas dezenas de melómanos
estrangeiros já reservaram alojamento na zona e jornalistas de alguns
dos principais meios de comunicação social de Brasil, Espanha e
Itália solicitaram acreditações. Mas a melhor notícia é o interesse
demonstrado pelos Teatros del Canal, de Madrid, e pela Ópera de
Bilbau em poderem vir a acolher esta produção de Onheama, após a
sua estreia europeia em Serpa, nos respectivos palcos.
|
Sem comentários:
Enviar um comentário