O Festival Terras sem Sombra caminha para o término da sua
12.ª edição. Dos oito concertos e actividades de biodiversidade
programadas, estão por concretizar duas etapas. Desde Fevereiro, este
projecto, que associa a música sacra ao património religioso e à defesa
da biodiversidade, já passou por Almôdovar, Sines, Santiago do Cacém,
Odemira, Ferreira do Alentejo e Serpa, levando até estas localidades do
Baixo Alentejo momentos únicos e memoráveis, apresentando intérpretes e
músicos de excelência à escala mundial – e integrando, assim, a região
nos circuitos nacionais e internacionais das artes.
Paralelamente, tem vindo a protagonizar um papel de relevo na defesa da
biodiversidade, ao desvendar tesouros ambientais com as acções que
realiza em prol da natureza. Como pano de fundo, a excelência de um
território a descobrir, pela mão da música, da arte e da natureza. A
iniciativa é da responsabilidade do Departamento do Património Histórico
e Artístico da Diocese de Beja.
Quando África
inspira o Ocidente e marca as vanguardas
A 4 de Junho, o Festival associa-se ao Município de Castro Verde para
trazer à Basílica Real desta vila o concerto Polirritmias: Ligeti Africano. O
transilvano György Ligeti (nascido em 1923 em Dicsőszentmárton – cidade
húngara que, após a II Grande Guerra, ficou em território romeno) é um
dos compositores fundamentais da música europeia do século XX, cuja
produção constitui já presença habitual no Terras sem Sombra. A sua vasta
obra definiu algumas das mais importantes tendências da vanguarda do
nosso tempo, mas não deixou de conquistar um público alargado, como o
prova o famoso Requiem que Stanley Kubrick utilizou no filme 2001:
Odisseia no Espaço.
Reconhecendo o génio da música tradicional de África, Ligeti inspirou-se,
para a concepção de algumas das suas peças, em aspectos marcantes desta
ancestral herança, profundamente ligada à espiritualidade do continente
negro e aos reflexos que daí dimanam para a vida comunitária. Um legado
que ele conheceu de perto e admirou com respeito. No concerto de Castro
Verde é possível apreciar o resultado dessas influências, através de um
cruzamento artístico entre o pianista Alberto Rosado, intérprete com
créditos bem firmados no panorama musical europeu, e três notáveis
músicos da Guiné-Conacri e Camarões.
Shyla Aboubacar, Justin Tchatchoua e Bangura Husmani executam as peças
originais da tradição africana, em que são peritos, e, por sua vez,
Rosado mostrará o resultado das transformações levadas a cabo pelo
compositor húngaro, falecido em Viena, em 2006. Percussionistas e
pianista tocarão igualmente juntos em alguns momentos, improvisando a partir
de temas consuetudinários. Polo Vallejo, o etnomusicólogo da Universidade
de Montréal (Canadá) que é uma figura de proa no campo da pedagogia e da
musicologia experimental, actualmente a viver na Tanzânia, fará a
apresentação, acompanhada por imagens, de modo a contextualizar, na vida
religiosa e social africana, o repertório em palco.
O espectáculo Polirritmias,
além do interesse que suscita pelas músicas, mostra a singularidade de
cada tema e dos elementos mais significativos das obras que o conformam,
revelando, assim, os parentescos que existem entre ambas as linguagens –
a africana e a ocidental. Ao destacar os aspectos que tanto chamaram a
atenção de György Ligeti e o genial uso que ele fez dos mesmos,
perscruta-se como concebeu e construiu as suas obras, cuja inspiração
deixou um assaz singular no panorama artístico contemporâneo.
Em certos momentos, poder-se-á comprovar de que forma a improvisação,
longe de parecer um exercício arbitrário, corresponde a critérios de
selecção e variação de uma matéria musical que parte de princípios assaz
regulados; isto permitirá que os intérpretes, por seu turno, encontrem
espaços comuns onde, em atmosfera de diálogo, se torna possível
experimentar e partilhar músicas diferentes, mas dispostas sobre
“estruturas” similares. Todas as músicas, afinal, não são mais do que uma
mesma e única música.
A transumância
e as suas canadas reais, um património ibérico a redescobrir
No domingo, 5 de Junho, com partida às 10h00 da Basílica Real, poder-se-á
acompanhar uma jornada de trabalho de um pastor do Campo Branco. Esta
actividade do programa do Festival para a salvaguarda da biodiversidade
tem por mote a transumância e visa descobrir os segredos dos antigos
moirais de ovelhas das planícies imensas de Castro Verde.
Facto hoje quase esquecido, os grandes rebanhos da zona da Serra da
Estrela e de outros pontos da Meseta Central Ibérica vinham, desde épocas
remotas, invernar nas “terras baixas” dos campos de Ourique. Mesmo quando
deixaram de ser efectuados os movimentos longos de transumância,
perduraram, até há pouco, as dinâmicas de deslocação dos gados entre o
Campo Branco e os terrenos mais férteis de pastagem da charneca (Odemira,
Santiago do Cacém, Sines), no Inverno, e para os “barros” (Beja e
Ferreira), no Verão.
Presentemente, em virtude de condicionalismos impostos pela legislação,
são raros os pastores que ainda passam largas temporadas no campo; a
actividade adaptou-se à nova evolução social, mas não deixa de integrar
os ensinamentos do passado, ainda bem presentes na paisagem de Campo
Branco. Importa conhecê-los e preservá-los, até porque são decisivos para
a conservação da biodiversidade, tal o seu grau de adaptação aos
territórios percorridos pelos rebanhos, e para o entendimento da paisagem
e dos monumentos que a povoam.
Aos participantes na iniciativa será dada a oportunidade de seguir
momentos fundamentais da jornada de trabalho de um moiral (“maioral”),
pastor sénior de Campo Branco. A actividade, de acesso livre, conta com a
colaboração do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Parque Natural do Vale do Guadiana), da Câmara Municipal de Castro Verde
e da Associação de Agricultores do Campo Branco. É uma excelente ocasião
para conhecer algumas das paisagens mais deslumbrantes do Sul, junto a S.
Pedro de Cabeças onde, segundo a tradição, teve lugar, em 1139, a batalha
de Ourique.
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