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terça-feira, 12 de abril de 2016

‘Para uma leitura da Amoris laetitia…’

Reflexão do Pe. Jesús Villagrasa, LC, reitor do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum sobre a exortação apostólica pós-sinodal

  Análise

Foto: ZENIT
Por fim, chegou. O Papa Francisco colocou nas nossas mãos a exortação apostólica Amoris Laetitia (AL), “A alegria do amor: Sobre o amor na família”, que reúne os frutos dos Sínodos celebrados em 2014 e 2015.

Uma vinheta de humor de Chiri na revista Alpha e Ómega está se realizando: “Está vendo? O Papa nos dá a razão? – diz um senhor; “Claro que não! Reafirma a nossa posição” – diz o interlocutor. “Mas se o Papa ainda não começou a falar” – comenta surpreendido um prelado vaticano. “Não importa … Estamos treinando”. Os debates e contrastes na imprensa parecem desconhecer que o Papa tenha dito alguma coisa ou não. Portanto, neste momento, talvez o mais importante seja preparar-nos e guiar-nos a uma leitura atenta desta exortação… antes de começar a comentar os conteúdos. De facto, o Papa Francisco nos oferece algumas orientações nos sete primeiros números da AL.

A intenção do autor … A primeira coisa que procura o leitor e intérprete de um texto é a intenção do autor, para conhece-la e respeitá-la, antes de julgar o conteúdo. No nosso caso esta intenção é explícita: não quer pronunciar-se para resolver questões debatidas por teólogos: “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas com intervenções magisteriais” (AL 3). Quer, assim, livrar pastores e fieis de posições extremas inaceitáveis, como são “um desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação” e a pretensão de “resolver tudo aplicando normativas gerais ou derivando conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas” (AL 2). Nem sequer lerá o texto aquele que, protegendo-se por trás de alguma destas posições, procure frases da exortação para jogá-las como se fossem pedras no adversário. Já disse na sua época Hans Urs von Balthasar que para alguns teólogos o Evangelho tornou-se uma pedreira da qual extrair pedras para atirar em debates teológicos. Se isso acontece com o Evangelho… o Papa Francisco quis reunir “as contribuições dos dois recentes Sínodos sobre a família, agregando outras considerações que possam orientam a reflexão, o diálogo ou a práxis pastoral e, ao mesmo tempo, ofereçam incentivo, estímulo e ajuda às famílias na sua entrega e nas suas dificuldades” (AL 4). O olhar do leitor não deve voltar-se para as posições de teólogos e pastoralistas, mas aos matrimónios, à vida das famílias que se esforçam por viver a sua vocação em um difícil e complexo contexto social e eclesial.

… E divisão do texto: Os comentaristas medievais de textos antigos costumavam colocar antes dos seus comentários uma divisão do texto em partes e secções normalmente ausentes no texto comentado. Era a maneira mais segura para captar a intenção do autor e supunha um conhecimento profundo de todo o texto. O Papa nos poupa este trabalho e, ao mesmo tempo, nos previne da “tentação universal” de ir directamente às orientações pastorais que iluminam as decisões que deveriam ser tomadas em situações problemáticas muito complexas que são, talvez, as que mais interessam aos meios de comunicação e a muitas pessoas, famílias e pastores. Antes de chegar a esses temas (tratados no capítulo 8) é necessário realizar um caminho com etapas (capítulos) que têm finalidades muito específicas e que o Papa expõe no n.6: “No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado [cap.1]. A partir disso, considerarei a situação actual das famílias, para manter os pés assentes na terra [cap.2]. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família [cap. 3], seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor [cap. 5-6]. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus [cap.6], e dedicarei um capítulo à educação dos filhos [cap. 7]. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe [cap. 8]; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar [cap. 9]”.

Como ler a exortação? “Não recomendo uma leitura geral precipitada” (7), que é a tentação de quem folheia o texto em busca de novidades. Os fieis temos à nossa disposição o fruto maduro de uma reflexão ampla e rica realizada por dois sínodos e apresentada à consideração do Santo Padre. Expressão de apreço teórico e prático por este texto pontifício, será seguir estes conselhos: primeiro, aprofundar “pacientemente parte por parte” (7), tornando-o objecto de tranquilo estudo e profunda reflexão. Segundo, fazer deste texto um vade-mécum para a vida, onde cada um procure “o que possa precisar em cada circunstância concreta” (7).

Continuidade. Tal como aconteceu com os textos conciliares, talvez haja quem diga que o texto não reflecte o espírito de um dos sínodos presumivelmente mais “progressista” ou que não é fiel à tradição… Com a perspectiva da experiência dos últimos anos podemos parafrasear o que o Cardeal Ratzinger dizia do Concílio. A melhor herança do Sínodo é este texto, correctamente interpretado na continuidade com o magistério anterior. O Papa Francisco parece querer destacar isso pela quantidade de citações dos relatórios sinodais e dos seus dois antecessores: São João Paulo II e a sua Familiaris Consortio e Bento XVI e a sua encíclica Deus Caritas Est, entre outros documentos.

Uma provocação: Na apresentação à imprensa da Exortação Apostólica foi salientado que a linguagem do Papa Francisco é clara, simples, concreta. Não duvido. Mas eu gostaria que o leitor ficasse com algumas reflexões de Etienne Gilson de sua obra “O filósofo e a teologia”, diante da constatação de que raramente os filósofos se animavam a ler umas encíclicas pontifícias que eram mais difíceis para eles. Estou convencido de que as cautelas de Gilson continuam sendo válidas e que estes textos exigem uma leitura reflexiva muito atenta, para captar o valor de cada frase no contexto geral da exortação, o valor de alguns silêncios, e como diria Gilson, a precisão de algumas imprecisões. Embora as razões para a dificuldade de leitura sejam outras, este texto de Gilson é pertinente: “A dificuldade não provém de que estejam escritas em um latim de chancelaria florido de elegâncias humanísticas, mas sim de que nem sempre deixa captar facilmente o sentido da doutrina. Então, aborda-se o problema de traduzi-las, e, ao tentar, acaba-se compreendendo pelo menos a razão de ser do seu estilo. Não se pode substituir as palavras deste latim pontifício por outras tomadas de qualquer uma das grandes línguas literárias modernas, e menos ainda desarticular estas frases para articula-las de outra forma, sem dar-se conta imediatamente de que, por cuidadosamente que se faça, o original perde a sua força ao longo da operação, e não só a sua força, mas também a sua precisão, que ainda não é o mais grave, pois a verdadeira dificuldade, conhecidíssima pelos que tentam a prova, está no respeitar exactamente o que poderia chamar-se, sem cair em nenhum paradoxo, a precisão das suas imprecisões. A precisão sabiamente calculada das suas imprecisões voluntárias. Quantas vezes não se pensa, depois de madura reflexão, que se sabe o que, com relação a tal ponto, quer dizer a encíclica mas não o diz exactamente, e sem dúvida tem as suas razões para parar em determinados limiares a determinação mais precisa de um pensamento preocupado por permanecer sempre aberto, pronto para acolher as possíveis novidades”. Gilson conclui pedindo aos filósofos cristãos que, além de fazerem cursos de teologia, se animassem a frequentar alguma universidade pontifícia na qual lhes ensinassem a ler os documentos pontifícios. Como reitor de uma universidade pontifícia certamente renovo esse convite, embora mais modestamente me limito a convidar os pastores e os fieis – a eles é dirigida a Amoris Laetitia – a ler com calma e profundidade este esperadíssimo texto sobre uma questão vital para as pessoas, as famílias, a sociedade e a Igreja: “o amor na família”.


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