Páginas

terça-feira, 12 de abril de 2016

“Oxalá fossem muitos os divorciados que sentissem a necessidade de comungar”

Entrevista com Miguel Angel Ortiz, professor de Direito Matrimonial Canónico na Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma, sobre a recém-publicada exortação apostólica do Papa


Miguel Ángel Ortiz - PUSC
O Papa Francisco apresentou a sua exortação pós-sinodal Amoris Laetitia, após dois anos de reflexão e de trabalho graças aos dois sínodos dos bispos celebrados em Roma. Um documento extenso e profundo que requer uma leitura atenta e pausada. São muitos os pontos abordados no texto já que a família e a pastoral familiar abarca muitos e diferentes âmbitos.

Para ajudar os nossos leitores na compreensão da exortação, ZENIT entrevistou o sacerdote Miguel Angel Ortiz, professor de Direito Matrimonial Canónico na Universidade Pontifícia da Santa Cruz em Roma. O padre Ortiz também é advogado do Tribunal da Rota Romana e juiz externo do Tribunal de Recurso no Vicariato de Roma.

***

ZENIT: Quais são os pontos mais importantes deste documento?
– Prof. Ortiz: O ponto de partida é a apresentação do Evangelho da família (“À luz da Palavra”). Em seguida, reflecte sobre a actual situação das famílias “a fim de manter os pés no chão”, recorda algumas questões fundamentais do ensinamento da Igreja sobre o matrimónio e a família e se detém no que o Papa considera os capítulos centrais do documento: o amor no matrimónio (cap. 4) e o amor que se torna fecundo (cap 5). Propõe uma reflexão sobre a pastoral familiar (antes e depois da celebração do matrimónio) e a educação dos filhos e aborda também a questão que suscitou maior interesse nos meios de comunicação: o discernimento pastoral diante das chamadas situações irregulares. Dedica o último breve capítulo a oferecer umas considerações de espiritualidade familiar. Parece-me que o Papa quer evitar que se centralize a atenção exclusivamente na questão da admissão dos divorciados à Eucaristia, e também que se faça uma abordagem puramente casuística. Por isso, estende-se cuidadosamente nos aspectos teológicos, antropológicos, pastorais que colocam diante dos olhos um ideal que se torna atractivo: um amor que realiza a vocação mais radical do homem ao dom de si, que se torna possível porque se baseia na fidelidade de Deus, que apoia as famílias também nos momentos de dificuldade.

É aqui que reside, na minha opinião, uma das chaves de interpretação do documento. Por um lado, apresentar a beleza do matrimónio e da família, mesmo com o risco de que suas exigências não sejam compreendidas ou aceitas. Por outro lado, que esse modelo não é só um ideal a ser admirado, mas que representa uma meta realmente alcançável, embora em ocasiões possa ser árdua.

ZENIT: Você o considera um documento “revolucionário”?
Prof. Ortiz: Certamente não é revolucionário porque proponha uma nova doutrina. De fato, o Papa destaca repetidamente a continuidade do seu magistério com o anterior, especialmente com Familiaris Consortio. Em relação às questões doutrinárias fundamentais ou aquelas que estão no centro das discussões da opinião pública, o Papa afirma expressamente a validade da doutrina da Igreja e manifesta a sua vontade de não modificar as normas vigentes.

No entanto, é inovadora a ênfase que o Papa coloca no discernimento das situações que precisam ser iluminadas com a luz do Evangelho. Ao referir-se à questão que provavelmente provoca comentários na opinião pública, a da pastoral com os divorciados novamente casados, o papa refere-se – como fez a Relatio 2015 – ao critério de Familiaris Consortio 84. Lá sublinhava São João Paulo II a necessidade de discernir entre as várias situações irregulares.

ZENIT: Onde está a novidade?
Prof. Ortiz: A novidade não está tanto na avaliação moral dos comportamentos – diferente em função da responsabilidade que os fieis tiveram na ruptura do matrimónio anterior e na construção da nova união – nem na qualificação disciplinar das situações, mas na perspectiva de uma maior integração dos fiéis, na vida da Igreja.

O Papa enfatiza fortemente que “se trata de integrar todos, deve-se ajudar cada um a encontrar sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objecto de uma misericórdia “imerecida, incondicional e gratuita”. Ninguém pode ser condenado para sempre, porque essa não é a lógica do Evangelho”. A limitação que podem encontrar alguns fieis – concretamente os divorciados casados novamente – para terem acesso aos sacramentos não provém de uma presunção de que estão em pecado – questão esta que devem discernir em cada caso com a ajuda do confessor – mas da incompatibilidade objectiva que se dá entre a significação do sacramento da eucaristia e a sua situação matrimonial.

Mas isso não significa que eles estão fora da Igreja. Como já havia sublinhado Familiaris Consortio, não só não estão excomungados, mas são chamados a participar na vida da Igreja. Deverão discernir em cada caso – e aqui reside a maior parte da novidade deste documento – como concretizar essa participação.

ZENIT: O documento também faz auto-críticas sobre como a Igreja apresentou até agora o matrimónio e oferece uma nova linguagem, novas pautas. Então, o que deveria mudar agora?
Prof. Ortiz: Na minha opinião, o resultado mais desejável da exortação seria que a nova perspectiva, a pastoral da qual fala Amoris laetitiae, leve todos os fieis a propor-se a meta alta da plenitude da vida cristã, à qual talvez se encaminhem aos poucos, gradualmente. Por desgraça, referindo-me especificamente aos divorciados em segunda união, na actualidade a grande maioria dos fieis mostram indiferença à possibilidade de frequentar os sacramentos. Oxalá fossem muitos os divorciados que sentissem a necessidade de comungar, aos quais lhes falta a plena participação na comunhão eucarística! Alimentar esse desejo sincero, na minha opinião, seria o melhor fruto da exortação. Mais do que um “certificado de normalidade”, o pastor deve ajudar-lhes a discernir qual é o caminho que devem percorrer para viver de acordo com a vontade de Deus.

Ou seja, o pastor lhe ajudará a valorizar a sua responsabilidade no fracasso do matrimónio anterior (responsabilidade da qual pode carecer, se foi abandonado pelo seu cônjuge), para assim cumprir com as obrigações surgidas da anterior união, especialmente se tiveram filhos, na decisão de casar-se civilmente, na construção do novo relacionamento, na educação dos filhos…

ZENIT: Por que você acha que este documento despertou tanto interesse na sociedade?
Prof. Ortiz: Eu acho que, de fato, o interesse gerado foi grande, embora nem sempre as expectativas foram as mesmas. Para a grande maioria dos fieis será um estímulo para redescobrir a beleza, a alegria do amor familiar que faz presente e é sustentado graças ao amor de Deus. Ajuda-los-á a viver a vocação familiar e superar as dificuldades com maior esperança, confiantes na ajuda misericordiosa de Deus.

Mas quem esperava uma nova solução para a questão da admissão aos sacramentos dos divorciados novamente casados ficarão decepcionados. O Papa quis expressamente evitar dar uma nova norma à qual acudir para resolver os casos que se apresentem: isso seria muito cómodo, diz.

A referência expressa à solução da Familiaris Consortio, com o acento na tarefa de discernimento e de formação da consciência, abre perspectivas pastorais enormemente ambiciosas. Pressupondo a boa vontade de quem procura não o consenso dos homens, mas o de Deus, esse caminho de contínua conversão à casa do Pai enche os corações de alegria embora o caminho não seja necessariamente fácil.


in


Sem comentários:

Enviar um comentário