O Vaticano é a “última corte de uma monarquia absoluta”, diz o Papa numa longa entrevista do Papa Francisco à Televisa. Ocasião para Francisco falar dos refugiados e do muro de Trump, do islão e dos jovens, da violência e da pobreza, dos jovens e das perguntas dos jornalistas que o levaram a inflectir posições. E para pegar ainda na camisa de uma mulher vítima de feminicídio para fazer dela uma bandeira…
No final da entrevista, o Papa toma de novo, nas mãos, a camisa de Rocío, uma mulher assassinada diante do seu filho. Alguém pedira à jornalista Valentina Alazraki, da televisão mexicana Televisa, que ela entregasse aquela peça de roupa a Francisco, para que ele pensasse “em todas as mulheres vítimas de violência, no México e no mundo”.
“Queria terminar falando a Rocío”, disse o Papa no final da entrevista. “Esta mulher não pôde ver os seus filhos, não os pôde ver crescer e aqui temos a sua camisa. Eu quereria dizer aos que nos estão a ver que mais do que uma camisa é uma bandeira, uma bandeira do sofrimento de tantas mulheres que dão vida e dão a vida e passam anonimamente.”
(Momentos finais da entrevista à Televisa, num vídeo disponível no canal Youtube)
A pergunta da jornalista, quando mostrou ao Papa a camisa da mulher assassinada, tinha sido sobre a violência de que são vítimas tantas mulheres no mundo – em Portugal, morreram já 14 mulheres nos primeiros meses deste ano. “De Rocío sabemos o nome, de tantas outras não”, acrescentou Francisco. “O sangue de Rocío e de tantas mulheres assassinadas, usadas, vendidas, exploradas, creio que tem de ser uma semente de uma tomada de consciência de tudo isto.”
Com o rosto triste e cabisbaixo, o Papa afirmou ainda: “Quereria pedir aos que nos estão vendo que em algum momento façam um bocadinho de silêncio no seu coração e pensem em Rocío, ponham um rosto a Rocío, pensem em tantas mulheres como ela. E, se rezam, rezem, se desejam, desejem, e oxalá o Senhor lhes dê a graça de chorar. Chorar sobre toda esta injustiça, sobre todo este mundo selvagem e cruel, onde a cultura parece que é só uma questão de enciclopédia. Queria terminar com esta recordação e a palavra: Rocío.”
Tempo antes, na entrevista, quando a jornalista da Televisa lhe colocara a pergunta sobre o feminicídio, o Papa responde: “Uma vida truncada, uma história acabada por causa da violência, a injustiça pela dor…” Começa por verificar que muitas pessoas se espantam ainda quando uma mulher se torna uma grande escritora ou ganha o prémio Nobel. Mas, acrescenta, muitas vezes a mulher está em “segundo lugar”. “E do segundo lugar a ser objecto de escravatura basta ver (…) São mulheres escravas. (…) E daí a matá-las…”
Francisco recorda ainda uma história: “Quando visitei um centro de raparigas resgatadas no Ano da Misericórdia, uma tinha a orelha cortada porque não tinha levado o [dinheiro] suficiente. Eles têm um controlo especial sobre os clientes e se ela não cumpre pegam-na ou castigam-na como a essa outra.”
Desligando desses casos, o Papa conclui: “O mundo sem a mulher não funciona. Não por ser quem traz os filhos, deixemos a procriação de lado… Uma casa sem a mulher não funciona. Há uma palavra que está por cair do dicionário, porque toda a gente tem medo dela: ternura. O património da mulher. Mas daí ao feminicídio, à escravatura, vai um passo. Que ódio é esse, não o saberia explicar.”
“A última corte europeia de uma monarquia absoluta”
Na longa entrevista à Televisa, cujo conteúdo foi divulgado nesta quarta-feira, 29 de Maio, o Papa respondeu a perguntas sobre migrações, o muro que o Presidente dos Estados Unidos continua a querer construir na fronteira do seu país com o México, os refugiados, o narcotráfico e os abusos sexuais por parte de membros do clero, entre outros temas.
É já próximo do final, no entanto, que Francisco faz uma das afirmações mais surpreendentes, mesmo se são conhecidas as suas críticas às “doenças da Cúria. Quando Valentina Alazraki lhe pergunta sobre a eventual contradição entre “uma Igreja em crise e um Papa que goza de popularidade”, o Papa Bergoglio responde com uma dura crítica à forma de governo que domina ainda o Vaticano.
A afirmação surge quase sem ligação directa ao que é dito antes. O Papa começa por afirmar que acredita que “a Igreja está a mudar” e que a reforma foi pedida pelos cardeais no conclave que o elegeu, em 2013. “As crises são de crescimento também, para mim é uma crise de crescimento, onde há que ajustar certas coisas, fomentar outras e andar adiante”. Cita depois o exemplo do novo bispo da cidade italiana de Lucca, que entrou na sua diocese a pé, acompanhado por mais de dois mil jovens. Só quando chegou à porta da catedral colocou as vestes de bispo e “entra com o povo”, conta Francisco. Ou a história da freira que, na República Centro-Africana já ajudou a fazer três mil partos.
“Isso é a força”, conclui. O que está em crise são modalidades que formam a Igreja que tem de desaparecer. Sejamos conscientes. O Estado da Cidade do Vaticano como forma de governo, a Cúria, o que seja, é a última corte europeia de uma monarquia absoluta. A última. As demais já são monarquias constitucionais, a corte dilui-se, mas aqui há estruturas de corte que são o que tem de acabar.”
Admitindo que um papa é “uma pessoa” e que deve ter férias, recorda os exemplos de João Paulo II que ia esquiar e de Bento XVI que ia para a montanha, e acrescenta: “O esquema de corte é o que tem de desaparecer. E isto pediram todos os cardeais – bom, a maioria, graças a Deus.”
“Gosto muito de andar na rua, aprendo muito na rua”
Sobre os muros, a propósito da barreira dos Estados Unidos na fronteira com o México, Francisco diz que já bastou o muro de Berlim, que “bastantes dores de cabeça e bastante sofrimento nos trouxe”. E afirma: “Levantar muros como se fosse a defesa? Quando a defesa é o diálogo, o crescimento, o acolhimento e a educação, a integração ou o são limite do ‘não se pode mais’, mas humano (…) Separar filhos dos seus pais vai contra o direito natural e esses cristãos… não o podem ser, tão pouco. É cruel. Cai-se na crueldade maior. Para defender o quê? O território ou a economia do país ou vá lá saber-se o quê.”
O Papa admite que diria o mesmo, acerca do tema, se estivesse diante do Presidente dos EUA e acrescenta: “Pode defender-se o território perfeitamente com uma ponte, não necessariamente com um muro. Falo de pontes políticas, de pontes culturais.”
A mesma ideia de diálogo político Francisco defende-a para casos como os do México. O país está actualmente bloqueado politicamente por uma situação de violência endémica que fez 40 mil mortos em 2018 e mais de 8400 nos primeiros três meses deste ano – o que significa 90 pessoas mortas por dia.
Acerca dos refugiados e migrantes, repete a ideia de que é necessário não só acolher, como também “acompanhar, promover e integrar”. Estamos numa situação de “emergência mundial”, diz, dando o exemplo da ministra da Cultura da Suécia, com quem se encontrou, que é filha de uma sueca e de um imigrante africano naquele país. “Veja o modo de tratar um migrante na Suécia: a dua filha é ministra do país!”
Noutro momento da entrevista, ainda a propósito do tema e da presença do islão na Europa, o Papa afirma: “O islão entrou na Europa outra vez, sejamos realistas, e além disso o islão é uma realidade que não podemos ignorar. Países islâmicos de África vivem muito amigos com os cristãos, muito amigos. Contava-nos um bispo que no Jubileu [da Misericórdia] na catedral havia sempre uma fila muito grande de manhã à noite (…) Uns iam ao confessionário, outros ficavam a rezar e a maioria ia ao altar da Virgem, eram todos islâmicos!” O bispo perguntou porque iam ali e o eles responderam: “Também queremos ganhar o jubileu.” O papa conclui: “Creio que somos irmãos, vimos todos de Abraão e nesse aspecto sigo as linhas do Concílio [Vaticano II]: estender mãos, hebreus, islâmicos, estender mãos o mais possível.”
O Papa fala ainda da pobreza, para dizer que há cada vez “menos ricos com a maioria da fortuna do mundo”. Refere-se aos jovens, dizendo que eles têm boa vontade mas que estão debilitados pela falta de raízes. Confessa-se arrependido de ter respondido mal a uma jornalista no Chile quando esta o confrontou os casos de abusos sexuais – e diz mesmo que foram essas perguntas que o levaram a reflectir que a informação que tinha sobre o tema “não era” a correcta. E, ainda a propósito dos abusos e da reforma que eles têm provocado, diz que a sua “política é abrir processos”. Manifesta o grande desejo de ir à China e ao Japão. Diz que recebeu com “sentido de humor” as acusações de “herege” e que o que lhe custa mais em Roma é não poder sair para ir comer uma pizzaàs escondidas. “Gosto muito de andar na rua, aprendo muito na rua.”
(A transcrição integral da entrevista, em castelhano, pode ser lida aqui)
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