Em memória de Agustina, celebro a sua vida e guardo o dia da morte, 3 de junho. O que mais dizer dela depois destes dias em que foi proclamada a sua glória, o génio, o talento, a obra? Depois das exéquias em que D. Manuel Linda, bispo do Porto, distinguiu a dimensão profética e mesmo teológica da sua existência? Elevadas figuras públicas julgaram e acharam e opinaram e qualificaram a sua pessoa. Agustina dispensaria adjetivos elogiosos, artifícios de oratória, distinções de circunstância. A compensar o vazio da voz ao vivo, ficam as lembranças, folheiam-se as páginas, retoma-se o embalo do texto, saboreiam-se as personagens, guardam-se as suas reflexões. A surpresa acontece, sempre.
Os seus livros, bastante sublinhados, muitas vezes os movimento entre a minha estante e a mesa de cabeceira. Vou ler Agustina quando procuro descrições de cenários e gente, prazeroso divertimento possível, antes de adormecer.
Conheci-a no Rio de Janeiro, por onde passou em circunstâncias variadas, e já em Lisboa houve uma época em que convivemos bastante. Não fui sua íntima amiga, mas várias vezes a sós, e não só, estive com ela. Carinhosa, “com o afeto português, infinito como o mar”, escrevia-me em 1985.
Posso dizer, sim, como foi bom conversarmos sobre pessoas e coisas, casos sérios e superficialidades. Foi bom pensar e muito poder rir, deixar-me levar pela sedução, a inteligência de Agustina, a sua vivacidade, o entendimento do mundo. Dizer a sua divertida maledicência, os momentos de paz, a diversa forma de doçura. O afeto. Tão presente na sua personalidade e tão oposto à maldade que muitos na hora da morte lhe atribuíram.
Só o afeto pode salvar
Como disse, conheci-a no Rio de Janeiro, quando foi publicada a edição brasileira de A Sibila. No jornal O Mundo Português, escrevia eu então: “Será que estamos assistindo a uma viragem de novos acontecimentos na área literária entre Portugal e o Brasil?” E continuava, citando opiniões de escritores brasileiros sobre a obra de Agustina, a autora já consagrada por críticos e leitores, livreiros e académicos, empenhados no estudo do seu texto literário, nas principais universidades brasileiras.
Em maio de 1994, fui ao Porto, entrevistá-la na sua casa, na Rua Gólgota, para a revista Máxima. Nesses anos, as entrevistas eram longas de quatro páginas, generosas de tempo, nelas o ambiente envolvia a fala e as pequenas narrativas de circunstância, a dizer a sua maneira de ser e entender.
Agustina recebeu-me, mostrou-me as rosas imensas no seu jardim e também os espaços da casa, tomámos um chá, biscoitos. A tarde foi longa, o tempo não tinha medida. Evocando como já anos antes a tinha conhecido, assim eu, na entrevista publicada, descrevi a sua personalidade. Descrição que hoje me parece certa e justa: “Sem perder uma pitada do que possa acontecer à sua volta, sempre com uma palavra de humor sobre as pessoas e as coisas, capaz de rir às gargalhadas, como muito pouca gente o faz, em Portugal, ela nunca se retira do movimento geral, ela percebe as conspirações estratégicas de homens e mulheres, é perfeita a enquadrá-las na sua secular sabedoria sobre a natureza humana. Muito pequenininha e ágil, coquete, tem uma inteligência que faz doer, de desmedida, uma acuidade extraordinária, um jeito especial para alfinetar o ridículo, nas suas várias faces. Ela inventa uma vírgula qualquer, que de repente introduz na fala, a dar-lhe um significado. Tem uma destreza de mãos, uma perspicácia no olhar. Complexa, difícil, arrevesada, densa é a escrita de Agustina, como se sabe. Mas, uma vez feito o mergulho na sua prosa, há um mundo sem fim a abrir-se, há o prazer da leitura, intenso.”
Agora, releio e reencontro palavras que ficaram guardadas no meu texto. Cito um pouco do que então me disse: “Uma sociedade não pode dar grandes saltos, unicamente o sentido do afeto é capaz de a salvar. Sem o afeto, a sociedade é uma barbárie, um acampamento de bárbaros, cheio de atritos, rivalidades, reivindicações, avidez e poder, ajustes de contas. Admito que esta civilização esteja perto de desaparecer, se não for essa civilização do afeto.”
Um outro fragmento faz-me pensar no sentido cristão da vida que existe entre nós portugueses, por cultura e por fé. Sempre singular nas suas sequências de pensamento, Agustina é deliciosa de ouvir, na escrita que permanece. Também aqui transcrevo um pouco mais do que me foi ensinando, nessa tarde. Doçura: “É mau fazer que a obra interfira na personalidade cívica, essa aceita-se para ser convivente. Aquilo que podemos ter de mais louvável como dom é a afabilidade, como se vê pela historia do jovem Salomão, que Deus distinguiu de todos os outros porque ele era ‘um menino bom de seu natural.’ Isso fez com que o próprio Deus se maravilhasse. É o mais extraordinário que pode acontecer, com os dotes da inteligência, da beleza, da excepcionalidade. Por isso é que o santo é a expressão mais rara da Natureza.”
Em memória de Agustina, desejo que um agitado silêncio seja feito. Silêncio interior que tenha sabor de voz e escrita, essa que não se apaga nunca.
[ Dois textos de Agustina e um documentário sobre a escritora e a sua obra ]
Educação na fé
Sendo a fé um dom, como pode ser motivo de educação? Não pode realmente ser ensinada, mas sim irradiada. Os que a possuem podem significar a estrela-guia, a perseverança num encontro difícil de suceder, mas cuja esperança comove todo o nosso ser. É possível que a Igreja se volte para esse apostolado da fé que foi extremamente importante no seu começo. Não o velho sistema de grupos sectários que são o modelo dos processos políticos e que, quando se afirma um movimento e este toma amplitude, se eliminam.
Não é isso. Trata-se de focos de comunicação que dispensam a organização premeditada e até a linguagem elaborada, o discurso piedoso e a erudição duma exegese. Um interessar a alma na fé sem recorrer ao preconceito da santidade. Descobrir a imensa novidade da fé num mundo em que o próprio cristão vive de maneira pagã e singularmente a coberto dos antigos textos que esqueceu ou que desconhece completamente.
A prova de que o cristão vive como um bárbaro é o sentido que tomou a arte religiosa. Não é raro encontrar nas salas de convívio burguesas, juntamente com a televisão, ou a mesa de jogo, ou a instalação estereofónica para o gira-disco, um Cristo crucificado sobre a lareira, ou uma Virgem dourada em cima da cómoda de vinhático; ou objectos do culto, espalhados numa intenção decorativa, quando não um quadrinho de ex-voto que se foi buscar a uma capela remota ou à loja de um antiquário.
E depois essas mesmas pessoas, ao abrigo duma cultura sentimental, promovem toda uma campanha contra a modificação dos ritos, e censuram os prelados que caminham no sentido de não objectivar Deus e de não o integrar na platitude da imaginação humana. Deus significa luz; ser filho de Deus é, pois, ter origem na luz. Esta é uma metáfora que utilizavam os essénios do Qumran. Designa uma energia interior que ultrapassa a experiência da pessoa e o conceito de pessoa.
Não é fácil, para uma sociedade humana estreitamente ligada a uma objectivação de Deus que o mostra com uma consciência semelhante à nossa e que envolve todos os nossos articulados de vida, não é fácil, repito, desprender-se duma espécie de Deus nacional e tribal; como de resto a Bíblia o representa; como o criador dum mundo limitado em comparação com o que conhecemos hoje. Um príncipe, promulgador de decretos e que prometia como recompensa da obediência um lugar à sua direita, como se prometia aos áulicos deste mundo.
Cem anos depois da morte de Jesus, surgiu no Ocidente a ideia de Cristo como filho de Deus, concreta manifestação de Deus. Mas S. Paulo evitou sempre confundir Cristo com o Deus Único; a sua forte convicção monoteísta impedia-o de admitir uma incarnação de Deus. De certa maneira, o cristão da actualidade encontra-se nessa mesma posição. Ele sabe que há muito de idolatria numa explicação objectiva de Deus. Idolatria a que chamamos às vezes ciência, ou história, ou progresso, mas que não satisfaz a fé na nossa luz interior. A educação da fé tende a ser a descoberta dessa energia interior agora em vias de se desembaraçar dos velhos detritos mágico-religiosos que eram o suporte de aspirações e de desejos quase sempre inscritos no nosso quotidiano.
(Agustina Bessa–Luís, in Contemplação Carinhosa da Angústia)
A regra franciscana era tão poética que dela só podia subsistir o perfume
(Texto disponível aqui)
Documentário sobre Agustina, realizado por António José de Almeida, produzido por Olga Toscano: Nasci adulta e morrerei criança
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