A Igreja Católica está a atravessar hoje uma época de reformas e, tal como no século XV, a procurar “conciliar a pluralidade das iniciativas e experiências, com a necessária firmeza e unidade”, disse o historiador José Mattoso, ao receber em Fátima neste sábado, 1 de Junho, o Prémio Árvore da Vida Padre Manuel Antunes, atribuído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da Igreja Católica.
Nos séculos XIX e XX, afirmou o autor de Identificação de Um País, “a Igreja teve de se defender de violentos ataques racionalistas”. E explicou: “Em Portugal acusaram-na de inventar milagres, de manter rituais supersticiosos, de alienar povos ignorantes. A Igreja reagiu adoptando uma apologia retórica, e refugiou-se à sombra do poder constituído. Enfraquecida pela perda dos seus bens e pela debilidade do seu pensamento racional, perdeu o sentido da criatividade cultural.”
A situação hoje é diferente: “Graças à reflexão teológica, à crítica exegética e ao verdadeiro conhecimento do passado, [a Igreja Católica] recuperou o seu lugar no mundo da ciência e da razão. A história crítica da Igreja ajuda-a a reconhecer os seus erros, a explicar as suas decisões, a interpretar indícios significativos da sua acção, a descobrir afinidades com correntes alheias, a reconstituir estruturas globais, a descobrir novidades inesperadas.”
Na sua intervenção, o historiador fez um percurso em três etapas, começando por evocar o pare Manuel Antunes, que dá nome ao prémio Árvore da Vida como “uma das personalidades que em Portugal mais contribuíram para dissipar a agressividade anti-clerical” existente na época “e restituir à Igreja um lugar importante na promoção da cultura”. A obra de Manuel Antunes (publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian), acrescentou, “permanece ainda hoje como um marco fundamental na história da cultura portuguesa”. O jesuíta, que leccionou na Faculdade de Letras e dirigiu a revista Brotéria “foi, efectivamente, um criador de cultura, na mais vasta acepção do termo”, afirmou Mattoso, e “merece bem ser modelo da promoção da cultura cristã em todos os seus domínios.”
O historiador evocou depois os outros anteriores laureados do prémio Árvore da Vida, condensando-os através de um nome, o do actor e encenador Luís Miguel Cintra, a quem o ligam laços de amizade: “Cada qual com a sua personalidade, todos eles souberam conciliar a inspiração artística ou a competência científica com o vigor da acção social. Este conjunto é bem diferente do que dominou uma época, felizmente já passada, em que a opinião pública corrente contestava a legitimidade de uma fé racional.”
Neste contexto, José Mattoso referiu o papel da historiografia e a sua relação com modelos de Igreja: “Nas controvérsias dos séculos XIX e XX esqueceram-se muitas vezes dados importantes sem os quais não é possível descobrir o sentido dos factos históricos, e cometeu-se frequentemente o erro de projectar sobre o passado ideias e doutrinas de épocas recentes. A historiografia nacionalista considerou o fim da Idade Média europeia como uma época de crise e generalizou sumariamente a decadência das suas instituições e a corrupção do clero.”
Do lado da Igreja a reacação também não foi a melhor: “A narrativa eclesiástica do século XIX não soube reconhecer a potencialidade de alguns ensaios inovadores surgidos nessa mesma época. Hoje, porém, sabemos que o fracasso de vários movimentos reformistas legítimos se deve mais ao excesso de zelo e à rigidez das formulações dogmáticas tridentinas do que a efectivos desvios doutrinais. A obsessão uniformizadora do catolicismo quinhentista e seiscentista persistiu durante os séculos seguintes, e levou, por exemplo, a proibir a leitura de Erasmo, a condenar Copérnico, criar a Inquisição, a legitimar a tortura, a fazer abortar os primeiros ensaios do Liberalismo Católico.”
Se a história crítica que entretanto se faz “não isenta a Cúria Romana nem muitos outros membros da hierarquia católica das suas responsabilidades na ruptura da unidade eclesial”, também em Portugal se neutralizaram ou enfraqueceram “as potencialidades dos movimentos religiosos e assistenciais do século XV, tão importantes”, acredita José Mattoso, “para compreender o vigor e o dinamismo da acção e do pensamento religioso do período mais brilhante da nossa História, a época da Expansão e dos primeiros contactos de Portugal com as culturas não europeias”.
O historiador citou ainda vários nomes que têm procurado corrigir esses erros do passado: José Pedro Paiva, da Universidade de Coimbra, e José Adriano Freitas de Carvalho (Porto), para a época moderna; António Matos Ferreira e Paulo Fontes, da Universidade Católica, sobre a época contemporânea; o Centro de Estudos de História Religiosa, no âmbito do qual o bispo Carlos Azevedo coordenou a História Religiosa de Portugal e o Dicionário de História Religiosa de Portugal e, no âmbito do Instituto de História Medieval da Universidade Nova, onde José Mattoso também contribuiu com vários estudos sore a época medieval, e cujo legado confiou a um pequeno grupo de jovens investigadores liderados por João Luís Inglês Fontes.
“Creio que só um pluralismo de raiz evangélica, fruto da Palavra única de Jesus Cristo, pode conciliar a imensidade e a multiplicidade das suas incarnações, no tempo e no espaço, com a unidade de Deus Pai, uno e trino, Senhor do Céu e da Terra”, resumiu o historiador na sua intervenção, que também pode ser vista e ouvida aqui.
A propósito do Prémio Árvore da Vida, José Mattoso concedeu uma entrevista conjunta à agência Ecclesia, Rádio Renascença e Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da qual se podem ler e ouvir alguns excertos: a cultura e a poesia são caminhos para Deus, diz o historiador, que sempre se sentiu “nas mãos de Deus” e que confessa também ter ficado surpreendido com a atribuição do galardão.
Na sua crónica no Expresso, o arcebispo e bibliotecário do Vaticano escreve sobre “Um abraço a José Mattoso”, dizendo que considera o historiador “uma das figuras mais extraordinárias da nossa contemporaneidade” e revela que entre os seus livros que mais aprecia está A escrita da história. Teoria e Métodos: “Os historiadores poderão lê-lo certamente como uma instigadora visão da história. Mas os poetas que o lerem vão também colher uma preciosa iniciação à poesia. Os que desejam sobretudo modalidades práticas para organizar o conhecimento acharão muitos dados relevantíssimos. Porém, isso será válido também para quantos sentem dentro de si o apelo da contemplação.”
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