3 Mai 19 | Destaques, Igreja Católica, Newsletter, Últimas |
Reafirmação do direito à vida, recusa do neonazismo, valorização da participação cidadã mesmo quando inorgânica, curta chamada de atenção para os problemas ambientais e afirmação da prevalência do destino universal dos bens sobre o direito à propriedade. E ainda uma crítica à competitividade “desumana” e um apelo à justa distribuição de rendimentos e à redução da pobreza. Tópicos de uma carta dos bispos portugueses, onde não falta uma frase que diz o contrário do pretendido e outra que chama “compatriotas” aos moçambicanos…
A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) aprovou esta quinta-feira, no final da assembleia plenária que decorreu em Fátima desde segunda-feira, uma carta pastoral intitulada Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja. O contexto são as eleições para o Parlamento Europeu, no final deste mês de Maio, e a escolha da nova Assembleia da República, em Outubro. O objectivo é “ajudar os católicos” e “outros portugueses” perante os desafios da realidade actual do país e da Europa.
O documento, com dez páginas, está dividido emquatro pontos: Toda a vida humana tem igual valor; O bem de todos e de cada um sem ser ditadura da maioria; Cuidar da casa comum; Nem Estado centralizador, nem Estado mínimo. Tópicos que pretendem traduzir e aprofundar outros tantos princípios básicos do pensamento social católico: dignidade da pessoa, bem comum, solidariedade e subsidiariedade.
Metade do texto – cinco páginas, divididas em nove alíneas – são dedicadas ao primeiro tema: direito à vida e à sua dignidade. Reafirmam-se a oposição ao aborto e a recusa da eutanásia, mas também se fala da solidão dos idosos como “um grave problema de saúde pública”, da violência doméstica, dos abandonose bullyings.
No caso do aborto, referindo a necessidade de “revisão da lei” – mas sem dizer em que termos exactos –, os bispos exigem “ao Estado que reforce o apoio às grávidas e a rede de informação sobre alternativas ao aborto” e apelam às paróquias católicas e aos centros de apoio à vida “para que criem grupos de acompanhamento e as grávidas não sejam abandonadas à sua sorte, uma vez nascida a criança”.
Sobre a violência doméstica, o texto fala do “dever de denúncia e apoio às vítimas” para quebrar o “ciclo de violência”, e remetem qualquer iniciativa concreta para as estruturas de pastoral familiar católica.
Os jovens que exigem “maior transparência e responsabilidade na gestão da coisa pública, bem como uma mais justa repartição de rendimento” recebem um elogio, enquanto se criticam as tendências para “relegar a expressão religiosa para espaços privados, confundindo a sã laicidade com o laicismo hostil à religião”.
A dignidade da vida deriva de se “sermembro da espécie humana” e, por isso, não varia conforme as capacidades, “não depende da raça, do sexo ou da idade” nem de se ser adulto, não desaparece “por deficiência ou doença” nem “se perde com a idade avançada, a demência ou o estado comatoso”, afirma o texto, sustentando as diferentes afirmações sobre este ponto.
Economia, demografia e uma frase ao contrário
É nas alíneas sobre as componentes económica e demográfica do direito a uma vida digna que surge uma linguagem menos habitual em documentos da CEP: recorda-se que a Resolução 31/2008, aprovada a 4 de Agosto pela Assembleia da República, declarou a pobreza como uma violação dos direitos humanos. Mas isso continua a acontecer gravemente no país, sublinha a nota, quando mais de 20 por cento da população está em risco de pobreza e esta ainda persiste em 10 por cento dos trabalhadores com emprego. “Os cristãos não podem, por isso, conformar-se com uma acção meramente assistencialista do Estado junto dos mais pobres”.
Neste ponto, os bispos dizem que reforçar a competitividade das empresas através de baixos salários não respeita a centralidade da pessoa: “não traz benefícios a quem nela trabalha, é desumana”. E acrescentam que, apesar do aparente saneamento das contas públicas, Portugal tem serviços públicos degradados, “na sequência da quebra de investimento”, na saúde e na educação, a par “do nível de carga fiscal mais elevado das últimas décadas”.
Sobre a demografia, o documento diz que são “urgentes medidas económicas e sociais de promoção da natalidade”. No entanto, a chave “para vencer a crise demográfica situa-se, antes disso, no plano da mentalidade e das opções de vida”. Mas há outros factores que dificultam objectivamente a opção de ter filhos: precariedade laboral, conciliação entre trabalho e vida familiar e recurso à laboração contínua por parte de muitas empresas, apenas para aumentar lucros. De forma explícita não se refere o trabalho aos domingos e feriados, tema abordado pelo bispo do Porto, Manuel Linda, na sua homilia da Páscoa.
É quando se refere às dificuldades dos jovens casais no acesso à habitação que o texto diz o contrário do que pretende: “E perde-se a possibilidade de a habitação impedir então a constituição de uma nova família, ignorada pelas regras do mercado. Há, por isso, que encontrar alternativas, nomeadamente no âmbito da habitação social.” Em vez de “impedir”, o verbo seria, possivelmente, permitir…
Desigualdades e “compatriotas” moçambicanos
As questões da pobreza e, sobretudo, da justa repartição da riqueza aparecem de novo referidas mais à frente, no terceiro ponto, desenvolvido em página e meia, sob o título “Cuidar da casa comum”. Aqui, os bispos reafirmam um princípio fundamental da doutrina social católica, segundo a qual “entre o destino universal dos bens e a propriedade privada, é o primeiro desses princípios que deve prevalecer”.
Há hoje níveis de desigualdade “muito além do necessário para estimular o crescimento económico e recompensar o esforço e o mérito”, diz o texto. E essas desigualdades traduzem-se não só em desigualdades de resultados mas também “de oportunidades”, dificultando “a muitos o acesso à educação e ao ensino”.
Na terceira alínea deste ponto, quando tratam da “solidariedade com as gerações futuras no cuidado da criação”, os bispos limitam-se a citar, em dois parágrafos, afirmações do Papa Francisco. Dizem, ainda assim, que este problema “implica acções de governos, mas também mudanças de mentalidade e comportamentos, nomeadamente da parte” dos cristãos.
Antes disso, há outro deslize de desatenção no texto, quando se designam os moçambicanos por compatriotas, provavelmente porque se queria referir também tragédias como as dos incêndios. Diz o texto, a propósito da solidariedade: “(…) apraz-nos, antes de mais, registar a sensibilidade e generosidade demonstrada entre nós perante as dores de compatriotas em situações de tragédia. A mobilização perante a tragédia de Moçambique é o mais recente exemplo.”
Nacionalismo de exclusão ameaça a Europa
No segundo ponto – “O bem de todos e de cada um sem ser ditadura da maioria –, em boa parte dedicado à Europa, surgem várias afirmações de entre as mais importantes do texto: no bem comum “está também a chave para superar a crise com que hoje se confronta o projecto da unidade europeia”, crise devida “a visões parciais e exclusivistas dos interesses nacionais”.
“Não se podem esquecer as raízes cristãs da cultura europeia, não tanto como relíquia do passado, mas como património vivo que pode dar frutos no presente”, diz a CEP. Mas isso não deve servir “para excluir da Europa pessoas de outras culturas e religiões: estaria simplesmente em clara contradição com a mensagem cristã”.
Noutra alínea deste ponto, dedicada aos migrantes, os bispos afirmam que são “inaceitáveis as correntes inspiradas no ‘nacionalismo de exclusão’ que vêm ganhando força em vários países”. E acrescentam: “Não estamos imunes a um clima de medo e desconfiança em relação aos estrangeiros, bem como o perigo de os encarar como concorrentes a postos de trabalho ou ameaça ao nosso nível de vida, esquecendo que muitos de nós buscam o mesmo estatuto e nível de vida noutros países.” Recordam ainda que “os contributos financeiros dos imigrantes para o Estado português são maiores do que as prestações de que beneficiam”, apesar de, para eles, ser maior o “risco de pobreza e privação material”.
A integração europeia – “âncora” de paz, direitos humanos, democracia, bem-estar, hospitalidade e acolhimento – está agora ameaçada por movimentos “como o Brexit e o crescente nacionalismo autoritário ou populista, acompanhados da generalização do discurso xenófobo”, dizem os bispos, para criticar o neonazismo, o antissemitismo e a islamofobia.
“Cabe-nos promover – assumem – soluções que combatam um ambiente de generalizada violência física, verbal e psicológica, que polui o ambiente e tolda de inútil crispação a relação entre as pessoas. Cabe-nos a nós contribuir para a justiça e a participação cidadã, que deve ser vista como positiva, mesmo quando é protagonizada por jovens e assume cariz inorgânico. O importante é que se abale as consciências no sentido de promover a cooperação, a solidariedade e a promoção económica e social.”
O bem comum exige ainda que não se esqueçam os direitos dos mais pobres nem os que não beneficiam das vantagens da globalização económica – como é o caso, em Portugal, das regiões do interior. Tal como exige o combate à corrupção – incluindo à pequena “cunha” – “que tanto está a minar a sociedade em que vivemos”.
Elogios ao SNS, ressalvas ao ensino e às IPSS
No último ponto, quando falam de outros dois temas portugueses sob o título “Nem Estado centralizador, nem Estado mínimo”, os bispos explicitam: “Contraria-se assim a concepção de um Estado omnipresente, monopolista e centralizador, que suprime a liberdade e a consequente responsabilidade das pessoas e dos grupos sociais. Mas contradiz-se igualmente a concepção liberal de um Estado mínimo.”
O texto faz um elogio ao Serviço Nacional de Saúde, que “contribui notavelmente para a prestação geral de cuidados” a todos os cidadãos e deve, por isso, “ser salvaguardado e melhorado”, mas diz que é o campo do ensino aquele em que talvez haja “maior distância em relação ao princípio da subsidiariedade”: “A baixa mobilidade social da nossa sociedade sugere a necessidade de aumentar substancialmente os meios dedicados à educação e ao sucesso escolar, para os quais o Estado precisa da sã colaboração de todos.”
Sobre as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), os bispos lamentam “as consequências diversas que a crise económica em Portugal teve na sociedade”, elogiam o papel das IPSS no apoio a tantas pessoas durante esse tempo e avisam que, agora, são essas instituições que estão em risco, com o aumento dos encargos sociais: “Em média, 58 por cento dos custos de funcionamento das IPSS são com o pessoal, e em muitas situações com salários baixos. Também tem havido atrasos da Segurança Social na entrega das comparticipações. O conjunto das diversas dificuldades tem como efeito que 40 por cento das IPSS se encontram financeiramente deficitárias.”
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