O título em latim (comum em documentos do magistério da Igreja) pode
parecer bizarro num documento sobre finanças (onde até questões mais técnicas
não são esquecidas), numa área onde a língua inglesa impera em absoluto.
Trata-se de um documento do Vaticano (da Congregação para a Doutrina da Fé e do
Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Integral) com considerações para
um discernimento ético sobre alguns aspetos do atual sistema económico e
financeiro recentemente publicado. A Igreja não ignora
estes aspectos, porque, como se afirma no documento, «nenhum espaço
no qual o homem age pode legitimamente pretender ser estranho, ou permanecer
impermeável, a uma ética fundada na liberdade, na verdade, na justiça e na solidariedade» (n.4)
O
documento não ignora elementos positivos de um sistema económico e financeiro
assente no mercado livre, mas não deixa de salientar os seus limites. Não
esquece que o bem-estar económico global tem crescido «com uma medida e rapidez nunca experimentada antes», mas também
lembra que «ao mesmo tempo aumentaram as
desigualdades entre os vários países e no interior dos mesmos» e que «continua a ser ingente o número de pessoas
que vivem em condições de extrema pobreza» (n.º 5). Considera o mercado «um potente impulsionador da economia»,
mas salienta como ele «não é capaz
de regular-se por si mesmo», porque não sabe produzir «aqueles pressupostos que permitem o seu desenvolvimento regular (coesão
social, honestidade, confiança, segurança, leis...), nem corrigir aqueles
efeitos e aquelas externalidades que resultam prejudiciais à sociedade humana
(desigualdade, assimetrias, degradação ambiental, insegurança social,
fraudes...) (n. 13). Tal como salienta a injustiça que pode derivar de
relações contratuais em que o poder das partes é tanto mais assimétrico quanto
mais complexas as questões financeiras envolvidas. E salienta como a vocação
primária da atividade financeira, não pode ser a especulação, mas «o serviço à economia real» (n.16)
Muito poderia ser sublinhado dos
vários temas abordados neste documento. Um aspeto que vi nele salientado de
forma recorrente foi este: as distorções no plano da ética, que são sempre
condenáveis em si mesmas, acabam por distorcer também o próprio funcionamento do
sistema. As crises financeiras dos últimos anos demonstraram-no com clareza.
Uma visão míope de curto prazo e de perspetiva individualista produz sérios
danos de eficiência numa perspetiva mais alargada de longo prazo e atenta ao
bem comum (que é «o bem de todos e de
cada um»). Esta é uma consideração que o documento repete a propósito de
várias questões: os juros usurários (n.16), a especulação com títulos de dívida
pública (n.17), a sobreposição dos interesses dos acionistas aos dos
trabalhadores, consumidores e comunidades locais (n. 23), as remunerações elevadíssimas
de administradores em funções de resultados imediatos sem atender à solidez da
empresa numa perspetiva de mais longo prazo e sem compensação com penalizações
equivalentes em caso de fracasso (n.23), contratos
de seguro de risco que permitem lucrar como o insucesso de terceiros (n.26), a
riqueza acumulada em paraísos fiscais (n.32).
Já
o havia dito o Papa emérito, Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate: «os
custos humanos são também sempre custos económicos e as disfunções económicas
acarretam sempre também custos humanos» (n.32).
Diante
da magnitude dos problemas e do poder avassalador dos agentes que operam nestes
âmbitos, os cidadãos comuns podem ceder à passividade pensando que, com as suas
pobres forças, nada pode ser feito para modificar as injustiças do sistema que
nos rege. Mas o documento concluiu com um apelo à ação, a um «novo protagonismo social». Lembra que
todos podemos selecionar os nossos bens de consumo e instrumentos de poupança e
investimento em função de critérios éticos que tenham em atenção o
desenvolvimento integral «de todas a
pessoa e de todas as pessoas». Podemos, assim, «votar com a carteira». E é assim mesmo que a carteira não esteja
repleta Porque «cada um de nós pode fazer
muito, especialmente se não permanecer só» (n.34).
Pedro Vaz Patto
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