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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Músicas que falam com Deus (38) - As Rotas da Escravatura, de Jordi Savall

É uma voz rouca e profundamente africana aquela que nos traz a voz do padre António Vieira: “Os Senhores poucos, os Escravos muitos; os Senhores rompendo galas, os Escravos despidos, e nus; os Senhores banqueteando, os Escravos perecendo à fome; os Senhores nadando em ouro, e prata, os Escravos carregados de ferros; (...) Estes homens não são filhos do mesmo Adão, e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo?” 

Este excerto do XXVII Sermão do Rosário – Maria Rosa Mística é um dos textos que Jordi Savall nos traz nest’As Rotas da Escravatura. O itinerário da obra começa com a evocação da primeira expedição portuguesa para capturar escravos na Guiné, em 1444, e termina 444 anos depois, em 1888, data da abolição da escravatura no Brasil. O percurso musical traz-nos à memória o pico de uma tragédia na qual Portugal tem um papel bem triste, mas que já existira antes e ainda perdura nos nossos dias, mesmo que formalmente extinta. 

O programa deste duplo disco, livro e DVD (cujo espectáculo passou por Lisboa em Abril do ano passado) é um diálogo intenso entre músicas do Mali, México, Colômbia e Brasil. São canções que falam da religiosidade africana, dos sofrimentos e lamentos, dos trabalhos e das penas, a par das pequenas alegrias, dos amores e rituais quotidianos, quase sempre marcados pela música e pela dança – únicos espaços de liberdade que ninguém podia tirar aos escravos, como escreve Jordi Savall. 

Apesar de o diálogo intercultural e inter-religioso através da música ser desde há muito uma das marcas do humanismo savalliano, é a primeira vez que o maestro e compositor catalão penetra na África subsariana. E o resultado é verdadeiramente espantoso, com as vozes e os instrumentos dos três continentes e no qual se destacam as vozes de Kassé Mady Diabaté ou Maria Juliana Linhares ou a deliciosa kora de Ballaké Sissoko (mas é injusto deixar de lado os restantes  músicos, cantores e o recitador). Savall devolve-nos a memória dos cerca de 25 milhões de africanos sujeitos a este tráfico infame e que não podem ser esquecidos (um número equivalente continua, ainda hoje, sujeito a condições de escravatura). A beleza e profundidade desta obra a isso nos obrigam.


Les Routes de l’Esclavage
Intérpretes: K. M. Diabaté, I. Garcia, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, La Capella Reial de Catalunya, Hespèrion XXI, 3MA e Tembembe Ensamble Continuo; dir. Jordi Savall
Edição: Alia Vox
(mais informações: vgm@plurimega.com)

(Texto publicado na revista Além-Mar, em Abril de 2017) 



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