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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

De olhos bem fechados

Perto da escola de nossa caçula um pequeno cão amarga seus dias na escuridão. Está cego. Mantido num espaço reduzido, que o protege da estreiteza de sentidos, preserva no faro e na audição sua identidade canina. Aproxima-se da tela quando chamado por um nome que nossa filha inventou. Deve achar que Pepê é o seu sobrenome, eis que nunca fora chamado desta forma. Se a morte não o espreita, tampouco a vida o acalenta. Será que revê algumas cenas que por certo protagonizou, como cão trigueiro que encantava crianças, ou como companheiro que encorajava os velhos? Seja como for, a vaga do oceano trágico da vida abateu-se sobre ele, e já o arrastou para um fim melancólico. Fim e melancolia, de qualquer jeito, já são quase sinônimos.

José Mindlin foi um empresário paulista. Advogado de origem, jornalista de O Estado de São Paulo, acabaria capitaneando uma das maiores indústrias de autopeças com capital nacional. Afastou-se do ramo quando pressentiu que a globalização esmagaria iniciativas autóctones nos países que não fossem protagonistas e o Brasil, infelizmente, já estava mais para caudatário que para líder de qualquer coisa avançada. Mindlin fez a leitura precoce e se pôs em fuga, digamos assim, como os bichos nos desastres naturais, que muito antes dos homens já se põem a correr.

Desde menino Mindlin cultivou o hábito de adquirir livros, sobretudo obras literárias com valor para colecionadores. Uma vida dedicada à arte de garimpar nos sebos e livrarias do mundo acabou por produzir um dos maiores acervos de que se tem notícia de autores nacionais ou de alguma forma ligados à nossa história, parte do qual constitui hoje a Biblioteca Brasiliana, instalada no campus da Universidade de São Paulo. Depois de casado, contaria com a cumplicidade de sua esposa, ela também uma apaixonada pelos livros antigos, a ponto de se tornar uma especialista em recuperar obras machucadas pelo tempo. Ironia da vida, quase no fim da vida Mindlin não podia mais ler. Dois auxiliares, então,  liam para ele obras inteiras.

Como apaixonado por livros, sempre que posso coloco meus pés em livrarias e sobretudo em bibliotecas, de preferência aquelas que ostentam obras do rés do chão ao teto, como convite irrecusável a encontrar algumas pérolas em meio a tantas lombadas. A casa de Assis Brasil, em Pedras Altas, por exemplo, tem seu centro exatamente na biblioteca, cujos apuro e dimensão traduzem de pronto onde andava o coração daquele notável político.

Quando vamos aos cemitérios e percebemos mausoléus. ou simples campas, abandonados, decaídos pelo desleixo, logo nos vem à imaginação a desídia dos descendentes ou sua extinção. Se viva a descendência, pode-se a ela imputar como pecado venial o esquecimento dos seus, olvidados na sucessão de invernos e verões. Uns e outros, dando de ombros para um campo santo, podem argumentar que lá, nos cemitérios, enfim nada mais resta. Pode-se aceitar a tese.

Uma biblioteca abandonada, porém, traduz uma ruptura entre gerações, eis que a um filho não escapam as imagens de seu pai com um livro na mão. São indeléveis as imagens de alguém recolhido à leitura, numa atmosfera de penumbra em que sobressaem tão somente o leitor e a luz que o ilumina, como uma luz espiritual. A orfandade de uma biblioteca, verdadeira cidade de livros e tradutora dos interesses maiores de seu proprietário original, é fato que clama aos seus.

Livros desprezados, filhos do esquecimento de bibliotecas que um dia tiveram sobrenome, até caírem nas mãos desinteressadas dos herdeiros, são cada vez mais comuns, como atesta o crescimento do número de casas que vendem livros velhos. Compulsar livros amarelecidos pelo tempo é um prazer que a vida não me negou e me faz lembrar a fina ironia de um personagem de Anatole France. Diante de seus livros, Sylvestre Bonnard responde a uma menina que indagara se ele lera todos: “Infelizmente, sim, e é por isso que nada sei, pois cada um desses livros desmente o outro; depois de ler todos, ninguém sabe o que pensar”.

Não se chega a tanto quando temos convicções e escolhemos o que ler com algum critério. Em tempo de muita informação e pouca sabedoria, a ironia de Bonnard não traduz a verdade. Muitos não sabem o que pensar não por terem lido demais, senão por não lerem coisa alguma além de textos de autoajuda e bobagens que não passam de gravetos dissipados na fogueira do inútil.

J. B. Teixeira





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