É claro que ficamos felizes com as vitórias, mas hoje sinto que no futebol o alívio por não ter perdido é ainda maior que a alegria de vencer. Por mais que se invoque o espírito desportivo, torcer por um time ou contra outro tem uma boa pitada de sadomasoquismo. Começo pelas recordações de futebol apenas como um pretexto inicial.
Quando comecei a torcer pelo Grêmio, os jogadores tinham enorme identificação com os clubes. Áureo, Joãozinho, Alcindo e Babá eram ídolos que ninguém imaginaria vestindo uma camiseta que não fosse a do Grêmio. A seleção brasileira conquistaria o tricampeonato no México e nos achávamos os melhores do mundo. E éramos. O tempo então encarregou-se de lentamente erodir nossa autoestima ... A derrota para o carrossel holandês foi o início. Há mais ou menos uma década, crianças e adultos passaram a envergar camisetas de Barcelona, Chelsea, Real Madri, como se fossem espanhóis ou ingleses. Em sendo o Brasil uma pátria inegavelmente identificada com chuteiras, o fenômeno era já um alerta significativo, solenemente ignorado por conta de muitos interesses, incluindo o das mídias que transmitem jogos de fora.
Horas depois da conquista do tricampeonato da Libertadores, que encheu ruas e praças como nenhuma manifestação cívica, recente ou remota, eis que o jogador gremista considerado o melhor da partida final deixa-se fotografar com a camiseta de um clube europeu que talvez pague a multa rescisória para contratá-lo. Já nos habituamos a perder os melhores que, mal iniciados em seus clubes, beijam o distintivo mas revelam o sonho de jogar na Europa. Para, mais tarde, decadentes, pangarés, voltarem a jogar no Brasil e ainda auferirem muito dinheiro.
Nascido hoje, talvez tudo me parecesse natural, eis que vivemos a plenitude do entreguismo, tempo em que nossa indignação coletiva parece extinta. Nossos protestos não precisam ser amordaçados porque nosso grito sequer brota na garganta. Nossa juventude sonha em residir no exterior, como se fôssemos uma ilha superpopulosa incapaz de prover oportunidades ou mesmo subsistência aos nativos. Rumamos para a situação que vi nos arredores de Buenos Aires há cerca de dez anos. Tomara um trem e a paisagem que desfilava pelas janelas mostrava regiões empobrecidas, prédios industriais abandonados e nitidamente mais velhos que jovens pelas ruas, denunciando o êxodo laboral, sabidamente tangido pelos números medíocres da economia argentina, que no início do século XX a colocava entre as dez maiores do mundo.
É claro que seria inútil sair pelas ruas cantando o hino nacional. A momentânea impossibilidade de reverter este processo me faz lembrar da autobiografia de Isadora Duncan. Californiana, desenvolveu suas ideias e carreira no velho continente. Fascinada pela cultura grega, depois de sucessos na França e na Alemanha decidiu morar na Grécia. Comprou uma área inóspita, com vista para o Partenon, e nela planejou construir um templo pagão. Passou a vestir-se com os panos dos gregos antigos e a usar sandálias. Foi algo bizarro para os próprios gregos, surpresos pela iniciativa da famosa dançarina. Demorou para perceber que era tarde demais.
Em sua primeira viagem a São Petersburgo, em 1905, Isadora Duncan viveu momentos que a abateram. Ainda não amanhecera quando, entre a estação do trem e o hotel, o cocheiro parou diante de um interminável cortejo fúnebre. Eram os mortos no Domingo Sangrento, massacrados junto ao Palácio de Inverno quando, desarmados, foram pedir socorro ao czar para a miséria em que viviam. O sepultamento foi programado naquela hora para evitar manifestações e conflitos. A industrialização tardia da Rússia e a situação precária do povo ocasionaram uma revolução no mesmo ano, uma espécie de avant-première de 1917. Ocupada até então com muitas frivolidades, a talentosa Isadora Duncan mal conseguiu conciliar o sono naqueles dias e fez para si mesma o voto de consagrar todas as suas forças “ao serviço do povo e dos oprimidos”.
Dias atrás fiquei sabendo que o governo estaria negociando com multinacionais a concessão da exploração do maior reservatório subterrâneo de água doce do planeta, o Aqüifero Guarani. Tudo se passa na calada da noite, sem que a imprensa bata tambores. Quem me relatou o fato não escondeu seu desanimado nacionalismo e revelou sentir-se massacrado pelos crimes de lesa-pátria que nos habituamos a engolir, sem mais denunciar os golpes. Estamos numa noite escura, assistindo o cortejo de nosso futuro. No silêncio de quem nos trai. Sem verter lágrimas, que brotariam, abundantes, se víssemos a cena com música à altura do drama que vivemos.
J. B. Teixeira |
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