Entrevista a António Cartageno, responsável do Serviço Nacional de Música Sacra
O que torna uma música
apta a ser usada na Liturgia? Há instrumentos proibidos nas celebrações
litúrgicas? Quais os erros mais comuns do uso da música ?
Estas e outras questões são frequentemente levantadas por quem colabora na animação da Liturgia. Para ajudar a esclarecer
O Presente Leiria-Fátima foi esclarecer estas e outras questões junto
do padre António Cartageno, sacerdote da Diocese de Beja que é um dos
nomes cimeiros da música litúrgica em Portugal.
O também responsável do Serviço Nacional de Música Sacra faz uma
leitura da realidade atual e diz que é “necessário preparar mais pessoas
para exercer o ministério da música sacra”.
O que é a música sacra?
Segundo a Instrução Musicam
Sacram (documento para a aplicação da reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II) “entende-se por música sacra aquela que, criada para o
culto divino, possui as qualidades de santidade e perfeição de forma.
Com nome de música sacra designam-se: o canto gregoriano, a polifonia
sagrada antiga e moderna nos seus vários géneros, a música sagrada para
órgão e outros instrumentos admitidos, e o canto popular, sagrado ou
litúrgico e religioso.”
De que forma a música e o canto ajudam na prática religiosa?
O homem, criatura de Deus, está
marcado pelo dedo do seu Criador. A maneira de soltar e exprimir essas
marcas é o sonho, a poesia, a música, a arte. A linguagem das artes e
particularmente a da música, mais do que qualquer outra linguagem,
aproxima o homem do mistério, da fonte da beleza, de que ele próprio
participa. Deus é pura Beleza. Deus é Amor. Quem ama canta. Por isso o
homem, marcado por Deus, canta ao seu Deus. A música sacra é, assim, uma
mediação que leva o homem a Deus e traz Deus ao homem.
Como compositor, entendo que a
música sacra é feita para envolver as pessoas, para as tocar e provocar
nelas a abertura à transcendência. Se é verdadeira arte, ela não deve
ficar pelo sentimento, pelo “bonitinho”, tem de ir mais fundo, apanhar a
emoção, a sensibilidade, numa palavra: tocar o coração, para o abrir a
Deus e ao Seu mistério!
O compositor que cria a obra, o
coro, o cantor ou a simples comunidade de fiéis que canta devem fazê-lo
de modo a transmitir uma mensagem de beleza e de santidade que provoque a
admiração, a comoção, a adoração de Deus, a glorificação, ajudando a
assembleia a aproximar-se de Deus e a experimentar a sua presença. A
Música Sacra deve, portanto, cumprir o fim que lhe atribuem os
documentos da Igreja, sobretudo a Constituição sobre a Sagrada Liturgia
do Concílio Vaticano II: “A glória de Deus e a santificação dos homens”
(S.C. 112).
Como classifica o atual repertório litúrgico musical em Portugal?
Creio poder afirmar que estamos
no bom caminho. Desde os anos 70 do séc. XX que temos musicados todos os
salmos responsoriais; o essencial da música para a Liturgia das Horas
também está acessível, em 3 livros volumosos; para o Próprio da Missa
estão publicados 2 livros com muitas propostas interessantes e para o
Ordinário da Missa está pronto a sair um livro também com muitas
propostas com vários níveis de exigência. Constata-se que a oferta de
repertório litúrgico-musical entre nós é já muito abundante e de
razoável qualidade, nada ficando a dever ao que se faz noutros países da
Europa. Sublinhe-se, a propósito, o testemunho imparcial de
estrangeiros que nos visitam e participam nas nossas liturgias e
manifestam a sua admiração e apreço pelo que vêem e ouvem…
É certo que uma coisa é haver
repertório e outra é pô-lo em prática. Mas é inegável uma certa melhoria
– lenta mas progressiva – nos últimos 25 a 30 anos, se compararmos com a
pobreza musical das duas primeiras décadas do pós-concílio.
O repertório que existe não é posto em prática?
Aí é que está o problema! Muita
gente, como não tem formação, vai pelo mais fácil e imediato. Recorre-se
com frequência a música predominantemente rítmica, inspirada em modelos
profanos, por vezes com textos muito pobres, e ignora-se por completo a
proposta litúrgica. Ou então vão-se repetindo quase sempre os mesmos
cânticos, por vezes desfasados do contexto celebrativo.
Felizmente também há muitas
comunidades com pessoas preocupadas em cantar os cânticos próprios de
cada domingo e há várias propostas na internet e em jornais diocesanos
que ajudam a uma escolha cuidada e criteriosa.
“Alguém disse que as celebrações do matrimónio estão a tornar-se uma selva onde tudo pode acontecer no campo da música!”
O que há ainda a fazer a este nível?
Claro que nem tudo são rosas. Há
ainda muita coisa a melhorar. Pela falta de formação musical e
litúrgica, em muitos grupos e comunidades celebrantes há cedências à
ligeireza e à superficialidade. Muitos fazem o que podem, mas
contentam-se com os mínimos. É necessário prepararmos mais pessoas para
exercer o ministério da música sacra e é também necessária mais atenção e
empenho por parte dos pastores.
Um sector onde as coisas não vão
muito bem: as celebrações dos casamentos, que estão invadidas de música
comercial, completamente fora do contexto litúrgico, muitas vezes com
grupos que anunciam os seus serviços na internet, mas não estão ligados à
prática regular da música sacra. Depois, o repertório é o que se
sabe... Alguém disse que as celebrações do matrimónio estão a tornar-se
uma selva onde tudo pode acontecer no campo da música! A propósito, o
Secretariado Nacional de Liturgia está a preparar uma coletânea de
propostas musicais que poderão dar resposta a esta situação.
O que pode ser feito para melhorar a qualidade da música nas paróquias?
Pode ser criado um pequeno grupo
de pessoas capazes de assegurar o canto. Depois, preparar, formar, ou
proporcionar formação a essas pessoas no campo específico da música.
Para isso, as Paróquias terão de investir algum dinheiro. É preciso
semear para depois colher os frutos. Sem pessoas minimamente preparadas
(organistas, diretores de coro/assembleia) não poderá ser boa a
qualidade da música das nossas celebrações.
É importante começar pelas
crianças: são as que estão mais receptivas e que aprendem melhor. Um
coro de crianças numa paróquia é uma verdadeira bênção de Deus! Também o
celebrante deve fazer um esforço por cantar bem o que lhe compete na
celebração. Antes de cada celebração dominical deve assegurar-se um
breve mas pedagógico ensaio à assembleia.
Há instrumentos proibidos nas celebrações litúrgicas?
Através da história, a proibição
ou aceitação dos instrumentos na liturgia esteve dependente sobretudo da
sua conotação psico-sociológica e da sensibilidade da Igreja em cada
época.
A Igreja prefere instrumentos que
estejam, segundo a tradição, ligados à vida religiosa do homem. Ela
sabe que os instrumentos usados em determinado contexto assumem o
significado desse mesmo contexto. Assim se compreende que muitos
instrumentos tenham sido proibidos na liturgia – e continuem a sê-lo –
pelo simples facto de estarem conotados com situações ou vivências muito
distantes da cultura.
Tendo em conta que a Palavra de
Deus tem na liturgia o primeiro lugar, nada se podendo sobrepor-lhe,
encobrindo-a, minimizando-a ou neutralizando-a:
E que instrumentos são esses?
Não devem usar-se na celebração
Eucarística instrumentos que estejam ligados a contextos profanos,
estranhos à liturgia. Por exemplo: acordeon, guitarras elétricas,
baterias, certo tipo de registos de órgão (vibrato).
Que instrumentos se devem preferir?
O órgão de tubos, o órgão
eletrónico que se lhe assemelhe, o quarteto de metais, a viola clássica
(dedilhada), a flauta transversal e a de bisel, as cordas da orquestra,
são instrumentos que se devem preferir para a liturgia por razões
históricas, tímbricas, vivenciais e culturais. Também algumas palhetas
poderiam entrar nestes instrumentos. O clarinete e mesmo o oboé, em
passagens solísticas, não ficariam mal.
Pela minha própria experiência
posso dizer que o uso dos instrumentos na liturgia pode ter um leque
muito variado de combinações. Tudo depende do cântico e do momento
ritual em que ele se insere.
Os compositores litúrgicos são uma espécie em vias de extinção?
De modo algum! No nº 12 da sua Carta aos Artistas, sob o título “A Igreja precisa da arte”, o Papa S. João Paulo II escreveu:
A Igreja tem necessidade dos
músicos. Quantas composições sacras foram elaboradas, ao longo dos
séculos, por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do mistério!
Crentes sem número alimentaram a sua fé com as melodias nascidas do
coração de outros crentes, que se tornaram parte da Liturgia…”.
Mas, digo eu, a história continua
e o mesmo Espírito criador de Deus que, nos 20 séculos da tradição da
Igreja, suscitou em tantas pessoas o dom da música para o Seu louvor,
continua a suscitar nos crentes, também no nosso tempo, vocações para a
música sacra. Elas aí estão, um pouco por toda a parte, e também em
Portugal…
O que torna uma música apta para ser usada na liturgia?
Uma música só é apta para usar na liturgia se ajudar a elevar o
espírito dos fiéis a Deus, se fomentar na assembleia o espírito
comunitário, se solenizar verdadeiramente as celebrações, enfim, se tem
as características exigidas pela Igreja:
A santidade: o sentido da oração, da dignidade, da beleza.
A bondade das formas, que seja verdadeira arte, que tenha valor objetivo, isto é, que seja fiel às leis da linguagem musical.
A adesão aos textos, que ajude a enaltecer o texto.
Que seja fator de comunhão, que comova e exalte.
Já o Papa S. João Paulo II escrevia na sua Carta Apostólica sobre a
santificação do domingo: “ Há que ter a preocupação da qualidade, tanto
no que se refere aos textos como às melodias, para que tudo aquilo que
de criativo e original hoje se propõe, esteja de acordo com as
disposições litúrgicas e seja digno da tradição eclesial que, em matéria
de música sacra, se gloria de um património de valor inestimável.”
5 erros comuns do uso da música litúrgica
Por António Cartageno
Não respeitar o justo andamento dos cânticos
É um dos erros mais comuns. Muitas vezes canta-se demasiado lento,
outras exageradamente apressado. Há cânticos bons que ficam
completamente estragados pela fraca interpretação.
Não respeitar o ritmo e a dinâmica das palavras
Este erro acontece mesmo em coros com alguma preparação, quando, por
exemplo, se acentuam sílabas finais que, normalmente são átonas (leves)
por natureza.
Má articulação do texto
O que o torna pouco claro e compreensível. Muitas vezes, também não
se respeita o ritmo da frase, respirando em momentos inadequados.
Não se respeitar a música que está escrita,
Roubando tempo nos pontos de aumentação.
Desafinação
Um dos erros mais aflitivos, especialmente nas notas agudas.
Algumas dicas
Nas Eucaristias dos Encontros Nacionais de Liturgia de Fátima dos
últimos anos têm-se feito algumas interessantes experiências,
aproveitando os instrumentistas que participam no Encontro. Refiro
algumas:
- O órgão, naturalmente, e alguns apontamentos de trompete nas partes
mais exuberantes do texto e da música, particularmente nas aclamações,
(Santo, Aleluia, Ámen final da Anáfora…), pelo facto de, por sua
natureza, deverem integrar elementos de ordem emotiva.
- Órgão, trompete e flauta, para os cantos processionais (Entrada e
Comunhão) e para o Glória, poderão dar um tom festivo alegre e majestoso
à celebração…
- Órgão e/ou clarinete, ou flauta, ou violino, por ex. para o Salmo
Responsorial. O recitativo do Salmo requer um acompanhamento muito
discreto e contido, com um uso sábio e equilibrado dos registos do
órgão, de modo a que a Palavra proclamada chegue corretamente às
pessoas.
- No Salmo também ficaria bem uma viola clássica (guitarra dedilhada), mas bem tocada, usando arpejos….
- O grupo de metais, com ou sem órgão, fica sempre bem nas aclamações
e nos refrões dos cânticos, criando um clima vibrante, solene e
majestoso…
Diogo Carvalho Alves | Presente Leiria-Fátima
in
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