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quarta-feira, 31 de maio de 2017

A marca registada de uma época

Por vezes chega a notícia de que alguém famoso teve um final trágico, como foi o caso de Amy Winehouse. Ainda hoje entristeço ao escutá-la cantando Body and Soul, com Tony Bennett. O que você fez consigo, moça? Que pena! Um enorme desperdício de vida, sobretudo, e de muito talento. Tinha asas de águia, mas voou como ave menor. Faltou um sentido para a existência.

A falta de um norte também pode ser visível em situações coletivas, complexas. Casos de um povo, ou mesmo de um continente. Sabe-se, por exemplo, que os países da parte mais abastada da Europa têm taxa de natalidade insuficiente para manterem sua população, que envelheceria e decresceria com vigor ainda maior não fosse o aporte de imigrantes. Gente sobretudo da África e do Oriente Médio, empurrada por conflitos armados ou pela precariedade sob a qual viviam em seus países de origem. Tentar uma nova vida em outro lugar faz parte da história humana e contribui para a mistura de gens e culturas desde que o homem pisou na Terra. O próprio Noé, para tomarmos um exemplo clássico, não aportou sua arca na mesma ravina da qual partiu ...

Brincadeiras à parte, qual a razão para que alemães, italianos e vizinhos gerem menos filhos que o necessário para que a população simplesmente se mantenha? Seria a pobreza? Quando eram miseráveis, quando viviam sob a dominação de um senhor de gleba, procriavam muito mais. Estarão doentes? Seus hospitais longe estão de estarem abarrotados, mas as maternidades andam subutilizadas. Seria a insegurança de um futuro negro, com guerra à vista? Não parece. A economia anda bem e a Europa talvez jamais tenha vivido um período similar de paz.

A despeito disto, a natalidade na Itália é acachapante, algo que um Átila ameaçando Roma não causou. Algo que a Alemanha nazista, em meio à guerra, com seus filhos a tombar por todos os fronts, não viveu. Quem poderia imaginar que etnias tão abastadas brigariam com o futuro? Mas se as mulheres não são inférteis, se a sexualidade jamais foi tão livre e se os homens parecem saudáveis, como explicar que a Europa viva uma ameaça de que nem a peste negra, nem a gripe espanhola, nem as guerras napoleônicas, nem a peste bubônica foram capazes?

Em minhas andanças convivi com alguns casais de países chamados desenvolvidos e não raras vezes percebi que alguns deles nunca teriam mais que um filho, dois no máximo. Cheguei a escutar que a felicidade é não ter filhos. Como manifestação isolada, só me resta respeitar. Ninguém é obrigado a casar e os sacerdotes aí estão como exemplo milenar. Tampouco os que casam têm a obrigação de gerar descendentes. Grandes homens, como Albert Schweitzer, benemérito insuperável em terras africanas, tiveram um só filho. Outros tantos, nenhum. O que intriga é o comportamento coletivo que conduz à decadência demográfica.

Sempre desconfiei que os fenômenos sociológicos que observamos em algumas sociedades materialmente muito desenvolvidas tivessem a digital do egoísmo e a contribuição de um certo agnosticismo, quando não de um ateísmo não militante ou sequer admitido. Dias atrás tropecei no livro “The new Vichy Syndrome: Why european intelectuals surrender to barbarism”, do psiquiatra inglês Anthony Daniels. Em três de seus capítulos o autor dá o recado que traduz muito do que desejaria expressar sobre a vida sem transcendência, a transcendência neopagã e a transcendência das pequenas causas, como a luta pelos direitos dos animais e o feminismo.

Daniels registra também que a essência da vida sem transcendência é a busca do máximo desfrute. Os apetites ficam no comando e o sujeito passa a viver sob a ditadura de satisfazê-los. No passado chamava-se isto de hedonismo. Hoje utiliza-se algumas expressões como “dei um presente para mim mesmo”, “eu mereço”, “quero qualidade de vida” e o “temos que aproveitar”.

Acordar de madrugada para conferir se um filho dorme bem, confortá-lo para que vença seus medos, velar sua febre, dividir com ele seus recursos, doar seu tempo e consolar-se com as limitações inerentes que a prole impõe, são sacrifícios que muitos evitam. É uma escolha, mas pode trair em alguns casos mero egoísmo, como o endeusamento da carreira, do sucesso e das comodidades miúdas. Muito se critica os períodos da história considerados obscurantistas. Isto é matéria para boas discussões, amaciadas com vinho tinto, mas desde já voto na vida sem transcendência como uma das mais obscurantistas e tolas que alguém pode levar. 

J. B. Teixeira



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