Relatório da Fundação AIS
Em 28 países do mundo, que albergam 4,03 mil milhões de pessoas, existe perseguição religiosa. Ou seja, 51,6% da população do planeta está sujeita a ser perseguida pelo seu próprio Governo, ou assassinada, devido à religião que professa, muitas vezes com pouca ou nenhuma reação da comunidade internacional. A denúncia é feita pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), no relatório 2023 sobre a “Liberdade Religiosa no Mundo”, lançado esta quinta-feira, 22 de junho, a nível internacional, e que conta com uma sessão de apresentação na Assembleia da República, em Lisboa.
O estudo bi-anual, a cujo resumo o 7MARGENS teve acesso em primeira mão, debruça-se sobre o período que vai de janeiro de 2021 a dezembro de 2022, e conclui que, destes 28 países, “13 situam-se em África, onde em muitas regiões a situação se deteriorou fortemente” face aos anos anteriores.
É o caso da Nigéria, onde uma “onda de raptos está a varrer o país e a assustar a comunidade cristã”. Pelo facto de se ter transformado “num dos países mais perigosos de África para a comunidade cristã e muito particularmente para os sacerdotes e as religiosas”, a AIS contará, durante a apresentação do relatório na Assembleia da República, com o testemunho do padre Bernard Adukwu, nigeriano a viver em Portugal há nove anos e que daqui a dois meses irá regressar à aldeia onde nasceu, na diocese de Idah.
O espiritano está feliz pelo reencontro com a família, mas não esconde o medo. “Qualquer coisa pode acontecer”, afirma. “Na verdade, tenho medo, mas não posso deixar de visitar a família por causa da situação do país. Não posso. Tenho medo, mas sei que Deus está sempre ao nosso lado. É um risco mesmo. Sobretudo, com os padres, com os religiosos e as religiosas”, reitera. Os raptos tornaram-se, sublinha o padre, num negócio lucrativo. “Posso dizer que, neste momento, é um negócio. Uma pessoa é raptada, e depois vão pedir talvez uns 5 milhões, 6 milhões… Quem tem dinheiro, paga…”
Para o padre Adukwu, “é muito importante avisar a comunidade internacional”, e foi por isso que decidiu dar o seu testemunho. “O mundo precisa de saber aquilo que estamos a viver neste momento… o mundo tem de saber”, sublinha.
Oito novos países “em observação”
Além destes países, assinalados no relatório com a “categoria vermelha”, são identificados 33 Estados na “categoria laranja”, isto é, onde existe “discriminação religiosa”. Nestes, vivem 853 milhões de pessoas e a situação piorou em 13 deles. Nesta categoria, estão três recém-chegados – Haiti, Israel e Emirados Árabes Unidos – enquanto a Nicarágua e o Sudão – dois países marcados a laranja no Relatório de 2021 – passaram para a “categoria vermelha”, com novas leis a ser aplicadas, que legalizam “efetivamente a violação da liberdade de pensamento, de consciência e de religião de grupos específicos”.
O relatório assinala ainda com a classificação “em observação” os países onde foram identificados “fatores de preocupação emergentes que têm o potencial de causar uma ruptura fundamental na liberdade religiosa”. Dois países – Haiti e Israel – colocados “sob observação” em 2021 desceram à “categoria laranja”, e oito países foram acrescentados a esta categoria: Argentina, Guiné-Bissau, Benim, Burundi, Essuatíni (Suazilândia), Gana, Indonésia e Madagáscar.
“Os restantes países não foram classificados, mas isso não significa necessariamente que tudo seja perfeito em termos de liberdade religiosa”, assinala a Fundação AIS, alertando que, em geral, “durante o período em análise, a perseguição intensa tornou-se mais aguda e concentrada, e a impunidade aumentou”.
Depois da pandemia, “um clima global tenso”
A este agravamento da violação da liberdade religiosa não é alheio o contexto de “um clima global tenso, afetado pelas consequências da pandemia de covid-19, pelas consequências da guerra na Ucrânia, pelas preocupações militares e económicas em torno do Mar do Sul da China e pelo rápido aumento do custo de vida a nível mundial”, refere a fundação pontifícia nas principais conclusões do estudo.
“Uma combinação de ataques terroristas, destruição de património e símbolos religiosos (Turquia, Síria), manipulação do sistema eleitoral (Nigéria, Iraque), vigilância em massa (China), proliferação de leis anticonversão e restrições financeiras (Sudeste Asiático e Médio Oriente) aumentou a opressão de todas as comunidades religiosas”, avança o relatório.
O documento assinala ainda que “os casos ‘híbridos’ de perseguição ‘educada’ e sangrenta” se tornaram mais frequentes, com alguns governos a aplicar “leis controversas que restringiam a liberdade de religião ou discriminavam certas comunidades religiosas”, como no caso da Índia.
E se até 2021 a maioria dos grupos religiosos perseguidos pertencia a comunidades religiosas minoritárias, o estudo da AIS revela que em 2022 e 2023 “cada vez mais comunidades religiosas maioritárias estavam também a ser perseguidas”, nomeadamente os cristãos na Nigéria, e também na Nicarágua.
O relatório alerta ainda para “a ascensão de ‘califados oportunistas'” durante o período em análise, com as “redes jihadistas transnacionais em África” a passar da “conquista e defesa de territórios fixos para ataques de ‘toca e foge’, com o objetivo de criar comunidades isoladas em zonas rurais mal defendidas, de preferência as que têm recursos minerais”, como em Moçambique e na República Democrática do Congo. “A insegurança e a falta de controlo governamental conduziram a revoltas e golpes militares (dois no Mali e um no Burquina Fasso)”, acrescenta o documento.
Perseguição intra-muçulmana e crimes antissemitas
O estudo da AIS dá ainda conta do aumento da perseguição dos muçulmanos, “nomeadamente por outros muçulmanos”. Na China, prosseguiram as perseguições brutais contra os uigures, tendo os muçulmanos da Índia e de Myanmar sido igualmente objeto de discriminação e perseguição. Foram também registados incidentes crescentes de perseguição intra-muçulmana entre sunitas e xiitas (Hazara no Afeganistão), entre interpretações muçulmanas nacionais e “estrangeiras”, bem como entre formas dominantes e as chamadas “desviantes” do Islão (ahmadi no Paquistão).
Após os confinamentos relacionados com a covid-19, aumentaram também os relatos de agressões contra a comunidade judaica no Ocidente, conclui o relatório, referindo que “os crimes de ódio antissemitas comunicados nos países da OSCE aumentaram de 582 em 2019 para 1367 em 2021”.
Outra forma de violência religiosa está a ocorrer na América Latina e noutras regiões em desenvolvimento, alerta o relatório: “a identificação das religiões tradicionais como inimigas das políticas pró-aborto e de outras políticas que afetam as mulheres”, tendo sido registadas manifestações cada vez mais violentas no México, Chile, Colômbia, Argentina, bem como em vários países do Ocidente”, nomeadamente as organizadas “para assinalar o Dia da Mulher da ONU (8 de Março), que testemunharam o ataque a edifícios religiosos e fiéis”.
Em países como a Índia e o Paquistão, foram ainda inseridos conteúdos depreciativos sobre as religiões minoritárias nos manuais escolares, “com consequências potencialmente significativas para o futuro das relações inter-religiosas”.
Sinais de esperança
Por outro lado, assinala também o estudo, foi registada uma “participação recorde em celebrações religiosas populares após o confinamento da covid-19”.
Além disso, “as iniciativas de diálogo inter-religioso aumentaram”, e para isso contribuíram o Papa Francisco “e outros líderes da Igreja em todo o mundo”, que “alargaram o seu alcance a outras comunidades religiosas”. Neste campo, o relatório destaca a intensificação do diálogo dos líderes religiosos da Indonésia, da organização muçulmana Nahdlatul Ulama, com os seus homólogos hindus, e também a criação, no G20, de um grupo permanente sobre religião.
“Um importante sinal de esperança é o facto de, à medida que mais pessoas no mundo se identificam como religiosas, o ímpeto para desenvolver o diálogo inter-religioso está a aumentar”, conclui assim a editora-chefe do relatório, Marcela Szymanski, na análise global que faz do mesmo.
Já Regina Lynch, presidente executiva da Fundação AIS Internacional, recorda a importância de divulgar o relatório, nomeadamente junto de representantes políticos, mas também nas redes sociais ou entre família e amigos. “Trata-se de uma ferramenta”, assinala, referindo-se ao documento que a instituição publica já desde 1999. “A ferramenta é tão boa quanto aqueles que a utilizam, a partilham com outros e trabalham para mudar a situação”.
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